sexta-feira, 15 de dezembro de 2017

Como crises humanitárias aumentam a vulnerabilidade de pessoas com deficiência


Violações de direitos humanos, riscos de vida e exclusão da ajuda humanitária estão entre os principais desafios enfrentados por pessoas com deficiência e outros grupos vulneráveis

Por Vivian Alt


A Organização Mundial de Saúde (OMS) estima que 15% da população mundial, ou aproximadamente mais de 1 bilhão de pessoas no mundo, possua algum tipo de deficiência. Esse número tende a ser ainda mais elevado quando há ocorrência de desastres naturais ou conflitos armados, onde há maior probabilidade de acidentes e/ou violênica. Apesar do amplo conhecimento de que pessoas com deficiência estão mais expostas a riscos em crises humanitárias, na prática sua vulnerabilidade acaba sendo exacerbada. Entre as causas deste problema, estão a falta de mecanismos para identificar pessoas com deficiência, ausência de especialistas no tema atuando em organizações humanitárias e o não envolvimento de grupos ou indivíduos com deficiência no planejamento, implementação e monitoramento de intervenções humanitárias.


Com isso em mente, o Politike inicia uma série de dois artigos que discutirão os problemas expostos acima. Este texto analisará como as crises humanitárias acabam exacerbando situações de exclusão social, tornando pessoas com deficiência ainda mais vulneráveis. Este primeiro artigo também fará uma análise introdutória das três principais causas de exclusão mencionadas acima, dando exemplos práticos de como ocorre a sistemática exclusão de pessoas com deficiência na resposta humanitária no Iraque[1]. O segundo texto da série analisará as consequências desta exclusão sistemática e fará uma contextualização destes problemas com a recente mobilização internacional para promover inclusão em respostas humanitárias.

Entendendo o que é deficiência e seu ciclo vicioso com a pobreza

Atualmente a definição mais aceita de deficiência (de acordo com a Convenção dos Direitos das Pessoas com Deficiência [ONU, 2006] e diversos movimentos internacionais) é uma combinação entre: 1) a condição médica[2] de um indivíduo; 2) as barreiras existentes no ambiente (como falta de acessibilidade, atitudes negativas, ausência de leis que promovam inclusão etc.); 3) posição social desta pessoa (sexo, condições financeiras, possibilidade de participação política, etnia, religião etc.).

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Apesar desta definição mais holística, quando o assunto são dados estatísticos ainda é preciso focar nas limitações de funcionalidade do indivíduo baseado em sua condição médica. Como dito anteriormente, a incidência de deficiência na população mundial é de cerca de 15%. Deste total, 80% estão em países em desenvolvimento. Além disso, há uma maior incidência de deficiência em pessoas com baixo nível de educação (19% de prevalência em pessoas que não frequentaram a escola, contra 11% nos que tiveram acesso à educação). Ademais, 20% da população em situação de pobreza extrema possui alguma deficiência e mulheres em países em desenvolvimento possuem maior probabilidade de adquirir alguma deficiência ao longo da vida (ONU, 2010).

Estes dados comprovam que existe uma relação direta e um ciclo vicioso entre pobreza e deficiência. Em países em desenvolvimento crianças e adultos estão mais expostos a doenças e acidentes, além de não possuírem acesso a tratamentos médicos adequados. Essas pessoas também têm menos acesso a informações importantes como segurança no trânsito, vacinação, como prevenir certas doenças e onde e quando procurar tratamento médico. Simultaneamente, pessoas com deficiência sofrem preconceito e têm menos acesso à proteção social, educação e emprego, aumentando a probabilidade de viverem em situação de pobreza (Graham et al, 2013).

Crises humanitárias agravam este quadro de exclusão e afetam pessoas com deficiência de forma desproporcional devido a fatores como destruição da infraestrutura física, interrupção de serviços públicos, fragilidade econômica, divergências políticas ou sociais, entre outros problemas.Concomitantemente, tais crises aumentam número de acidentes, violência, doenças e epidemias, podendo elevar a ocorrência de deficiências permanentes na população. No decorrer dessas crises, em geral, organizações internacionais lideram a assistência à população afetada, como é o caso do Iraque.

Em 2014 o grupo jihadista Estado Islâmico (EI) assumiu o controle de diversas cidades iraquianas, incluindo grandes centros como Fallujah, Hawija e Mosul. Entre 2014 e o final de 2017, mais de 3 milhões de pessoas fugiram de suas casas em busca de segurança em áreas controladas pelo governo, principalmente na região semi-autônoma do Curdistão. A ONU e ONGs internacionais têm liderado a maior parte assistência humanitária à população afetada pela violência. Falhas de planejamento, entretanto, excluem sistematicamente pessoas com deficiência e agravam sua situação de vulnerabilidade no país.

Latrinas em construção em campo de refugiados na Etiópia. Crédito: UNICEF / Creative Commons / Flickr
Obstáculos à inclusão de pessoas com deficiência em respostas humanitárias

Considerando os dados da OMS, é possível estimar que ao menos 480 mil dos deslocados internos no Iraque[3] possuem algum tipo de deficiência. Dados fornecidos pelos administradores dos campos de deslocados, contudo, apontam para uma incidência de deficiência inferior a 1%, gerando questionamentos sobre a qualidade dos métodos de coleta de informação nesses locais.

No momento da admissão no campo, o chefe de cada família responde a um questionário conduzido pela equipe dos administradores. Esses formulários são, porém, ineficazes para identificar pessoas com deficiência nos núcleos familiares. Além disso, as ferramentas de “needs assessment” [ou “análise de necessidades”] de organizações internacionais como a ONU e demais ONGs não estão, atualmente, aptas a identificar pessoas com deficiência. Isso é especialmente comum para pessoas com deficiências intelectuais e indivíduos com problemas de saúde mental.

Aliado às falhas dos dados estão a falta de envolvimento de pessoas com deficiência no planejamento, implementação e monitoramento de projetos e a ausência de especialistas em inclusão – seja na ONU ou em ONGs. Esses elementos fazem com que organizações atuando no Iraque não possuam informações concretas sobre pessoas com deficiência, não dialoguem com lideranças locais (impedindo atividades viáveis e sustentáveis), nem possuam apoio técnico para implementar projetos. Consequentemente, estes não são planejados de acordo com as necessidades especiais de pessoas com deficiência, não são sustentáveis (tendendo a acabar uma vez que não haja mais financiamento) e, possivelmente, não seguirão padrões mínimos de qualidade.

As consequências práticas do planejamento ineficiente para pessoas com deficiência são: 1) falta de segurança durante e após o deslocamento de sua casa até campos de deslocados ou comunidades fora do controle do EI; 2) obstáculos para acessar serviços básicos como saneamento, moradia adequada, distribuição de alimentos, educação, assistência legal, proteção de mulheres e crianças, empregos, entre outros itens.


O momento de fuga de locais controlados pelo EI e os campos de deslocados internos expunha pessoas com deficiência a diversos perigos. Os riscos eram especialmente maiores para pessoas com tipos de deficiência que limitam os movimentos, nos casos em que há dependência da família para se locomover ou se comunicar e dependência de equipamentos de assistência como cadeira de rodas, muletas e bengalas. Nas rotas de fuga, os maiores riscos eram a separação familiar, interrogatórios de homens e meninos acima de 13 anos pelo exército iraquiano e dificuldade em encontrar caminhos seguros. Ademais, uma vez nos campos ou comunidades, crianças com deficiência estavam mais expostas à exploração, abusos domésticos e violência. Já as mulheres ficavam mais vulneráveis ao abuso sexual e violência física.

Exclusão de serviços básicos:

A falta de acessibilidade física (como ausência de rampas, estruturas acessíveis, calçadas) e em meios de comunicação (como falta de sinalização e informação em formatos acessíveis) era visível em todos os campos de deslocados, tornando o acesso a banheiros, barracas e distribuição de alimentos quase impossível. Em alguns campos fraldas geriátricas eram distribuídas para pessoas com deficiência, algo humilhante para quem precisava apenas de um banheiro acessível. A distribuição de alimentos era desorganizada e desumana, expondo todos a riscos de integridade física.

A exclusão de pessoas com deficiência em respostas humanitárias as expõem a diversos riscos e humilhações, violando acordos internacionais como a Declaração Universal dos Direitos Humanos, a Convenção dos Direitos das Pessoas com Deficiência, a Convenção dos Refugiados, o Direito Humanitário Internacional entre outros. Uma mobilização internacional para reverter esse cenário tem ganhando força nos últimos dois anos, mas ainda há muitos desafios para que decisões tomadas no âmbito internacional sejam colocadas em prática.

O próximo texto desta série discutirá os esforços neste sentido, os desafios e o caminho para promover a inclusão de pessoas com deficiência em respostas humanitárias.

Imagem no topo da página: Campo de deslocados internos no Sudão do Sul. Crédito: Malte Fähnders / Creative Commons / Flickr
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Notas de rodapé 
[1] A escolha se deve a experiência profissional da autora no país. Contudo, é importante ressaltar que os dados e informações neste texto são fruto da pesquisa e opinião pessoal da autora e não da organização para qual trabalhou.
[2] Em inglês há uma diferenciação entre as palavras “impairment” que seria a condição médica ou o tipo específico de deficiência e “disability” que reflete essa definição mais holística da CDPD.
[3] Do inglês, Internally Displaced Persons.

Sobre o autor: Vivian Alt

Mestre em Políticas Sociais para Países em Desenvolvimento pela London School of Economics. Trabalha para a ONG Entre suas experiências mais recentes estão Sudão do Sul, Jordânia (com refugiados Sírios) e Iraque.

Holds a Master degree in Social Policy and Development from the London School of Economics. Her latest work experiences include South Sudan, Jordan and Iraq.

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