sábado, 26 de abril de 2014

A morte da imaginação


Especialistas em informática previram que, num futuro não muito distante, chips serão implantados no corpo. Estão atrasados. Corpos já pertencem a máquinas.


Jacques Gruman

Nunca entendi essa obsessão por sorrisos em fotografias. Deve ser um conluio com os dentistas. (Nora Tausz Rónai)

Reza uma antiga lenda que dois reinos estavam em guerra. Os perdedores acabaram condenados ao confinamento do outro lado dos espelhos, um primitivo mundo virtual em que eram obrigados a reproduzir tudo o que os vencedores faziam. A luta dos derrotados passava a ser como escapar daquela prisão. O genial Lee Falk inspirou-se nesta narrativa para criar, na década de 1940, O mundo do espelho, para mim uma das mais aterrorizantes histórias do Mandrake. Espelhos foram, aliás, protagonistas de algumas sequências cinematográficas assustadoras. Bóris Karloff, um clássico do gênero, aproveitou muito bem o medo, que desde crianças carregamos, de que nossos reflexos nos espelhos ganhem autonomia. Ui! Já imaginaram se isso virasse realidade? Teríamos que conviver com nossos opostos, um estranhamento no mínimo desconfortável. Os quadrinhos exploraram o assunto também na série do Mundo bizarro, do Super-Homem. Era um nonsense pouco habitual no universo previsível dos super-heróis.

quarta-feira, 23 de abril de 2014

O povo do abismo atravessa o tempo

A exemplo da Inglaterra de cem anos atrás, quando era proibido dormir na rua, cidades dos EUA estão aprovando leis que proíbem sem-teto de dormir em carros

Douglas Portari

Há mais de um século – em 1903, mais precisamente –, o escritor norte-americano Jack London publicava O Povo do Abismo (lançado no Brasil pela Editora FPA). London havia atravessado o Atlântico para se embrenhar numa selva de miséria e indignidade, o coração das trevas da insuspeita capital do maior e mais rico império de então: o East End londrino.

No livro, o escritor narra as condições subumanas de milhares de ingleses, presos a uma situação que transbordava de geração para geração e lançava a charada: “A Civilização aumentou o poder de produção do homem (...) mas ainda assim milhões de integrantes do povo inglês não recebem comida suficiente, nem roupas, nem botas (...) se a Civilização aumentou o poder de produção do homem comum, então, por que não melhorou a condição do homem comum?”

A pergunta – e, ao que parece, a situação – atravessou o tempo e, novamente, o Atlântico. Um artigo publicado pelo professor de Direito da UCLA, Gary Blasi, no jornal inglês The Guardian (The 1% wants to ban sleeping in cars – because it hurts their 'quality of life' - Depriving the homeless of their last shelter is Silicon Valley at its worst – especially when rich cities aren't doing anything to end homelessness), nesta terça-feira, 15, fala sobre o descalabro de pobreza nas ruas do mítico Vale do Silício, no norte da Califórnia, o lar da pujante indústria do futuro, a informática, no estado mais rico do país mais poderoso do mundo.

Paliativo estético

A exemplo da Inglaterra de cem anos atrás, quando era proibido dormir nas ruas, o que impedia que mendigos e trabalhadores sem-teto se amontoassem pelos cantos, várias cidades norte-americanas estão aprovando leis que proíbem sem-teto de dormir em carros estacionados. O professor Blasi apresenta, não sem ironia, dados sobre o crescimento da desigualdade social e da miséria nos Estados Unidos e questiona como nada é feito para minorar seus efeitos, tanto pelo poder público quanto pelos ricos – o tal 1%, gente que é contra a desigualdade, até que ela surja em sua rua, onde, claro, vira caso de polícia.

O ‘paliativo estético’ dessa proibição lembra a nossa brasileiríssima ‘arquitetura da exclusão’, quando a própria administração pública, ou os bancos e seus lucros pornográficos, acha mais conveniente instalar grades, lanças e pedras nos nichos que podem servir de dormitório aos sem-teto e mendigos do que investir em abrigos e ações de ressocialização. Voltamos a Jack London: “Se isso é o melhor que a Civilização pode fazer pelos humanos, então nos deem a selvageria nua e crua. Bem melhor ser um povo das vastidões e do deserto, das tocas e cavernas, do que ser um povo da máquina e do Abismo.”

(*) Texto publicado no Blog da Fundação Perseu Abramo.

Créditos da foto: Wikimedia Commons

Texto original: CARTA MAIOR

segunda-feira, 21 de abril de 2014

O futuro do nosso planeta depende de 58 pessoas

Em 13 de abril, o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas publicou a última parte de um relatório em que alerta sobre o aquecimento global.

Roberto Savio (*)

Apesar de para muitos o seguinte fato ter passado despercebido, em 13 de abril, o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) publicou a terceira e última parte de um relatório em que, sem rodeios, alerta que temos apenas 15 anos para evitar ultrapassar um aquecimento global de no mínimo dois graus previstos. As consequências serão dramáticas. 

Apenas os mais míopes não se dão conta do que isso significa: desde o aumento do nível do mar até furacões e tempestades mais frequentes, além de um impacto adverso na produção de alimentos.

Em um mundo normal e participativo, onde 83% das pessoas que vivem atualmente existirão dentro de 15 anos, tal relatório teria provocado uma reação dramática. Em contrapartida, não houve um só comentário por parte dos líderes dos 196 países onde habitam os 7.5 bilhões de “consumidores” do planeta.

Os antropólogos que estudam as semelhanças e diferenças entre os seres humanos e outros animais já chegaram à conclusão há um bom tempo de que a humanidade não é superior em todos os aspectos. Por exemplo, o ser humano é menos adaptável à sobrevivência que muitos animais em casos de terremotos, furacões e outros desastres naturais. Mostram sinais de alerta e de mal-estar. 

A primeira parte do documento do IPCC, publicado em setembro de 2013 em Estocolmo, estabeleceu que os humanos são a causa principal do aquecimento global. A segunda parte, lançada em Yokohama em 31 de março, afirmou que “nas últimas décadas, as mudanças climáticas causaram impactos nos sistemas naturais e humanos em todos os continentes e em todos os oceanos”. 

O IPCC é composto por mais de dois mil cientistas de todo o mundo e esta é a primeira vez em que chegou a conclusões firmes desde sua criação pelas Nações Unidas em 1988. A principal conclusão é que, para parar esta locomotiva rumo a um caminho sem volta, as emissões globais precisam ser reduzidas entre 40% e 70% antes de 2050.

O relatório adverte que “apenas grandes mudanças institucionais e tecnológicas darão uma oportunidade maior que 50%” de o aquecimento global não ultrapassar o limite de segurança. Acrescenta ainda que as medidas precisam começar em 15 anos, sendo concluídas em 35. 

Vale a pena ressaltar que dois terços da humanidade têm menos de 21 anos e, em grande medida, são os que precisarão suportar os enormes custos da luta contra a mudança climática. 

A principal recomendação do IPCC é muito simples: as principais economias devem estabelecer um imposto sobre a poluição com dióxido de carbono, elevando o custo dos combustíveis fósseis para impulsionar o mercado de fontes limpas de energia, como a eólica, a solar ou a nuclear. 

Dez países causam 70% do total de poluição mundial com gases de efeito estufa, enquanto os Estados Unidos e a China são responsáveis por 55% dessa magnitude. Os dois países estão tomando medidas sérias para combater a poluição. 

O presidente norte-americano, Barack Obama, tentou, em vão, obter a permissão do Senado e precisou exercer sua autoridade com a Lei do Ar Limpo de 1970 para reduzir a poluição de carbono de veículos e instalações industriais, estimulando tecnologias limpas. Entretanto, não pode fazer mais nada sem apoio do Senado. 

O todo poderoso novo presidente da China, Xi Jinping, considera o meio ambiente uma prioridade, em parte porque fontes oficiais estimam em cinco milhões anuais o número de mortos em seu país pela poluição. Mas a China precisa de carbono para seu crescimento, e a postura de Xi é: “por que deveríamos frear nosso desenvolvimento, se os países ricos que criaram o atual problema querem que tomemos medidas que atrasem nosso crescimento?”.

E assim é criado um círculo vicioso. Os países do Sul querem que os países ricos financiem seus custos de redução da poluição e os do Norte querem que os demais deixem de poluir e assumam seus próprios custos. 

Como resultado, o resumo do relatório, que está destinado aos governantes, não contém as premissas que poderiam dar a entender a necessidade de que o Sul faça mais, enquanto os países ricos pressionaram para evitar uma linguagem que pudesse ser interpretada como a obrigatoriedade de que eles assumam obrigações financeiras. 

Isto deveria facilitar um brando compromisso na próxima Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas de Lima, de onde se espera um novo acordo global (vale lembrar do desastre da conferência de Copenhague em 2009).

A chave de qualquer acordo está nas mãos dos Estados Unidos. O Congresso norte-americano bloqueou toda iniciativa sobre o controle climático, proporcionando uma saída fácil para China, Índia e para o resto dos poluidores: “por que devemos assumir compromissos e sacrifícios, se os Estados Unidos não participam?”. 

O problema é que os republicanos transformaram as mudanças climáticas em uma de suas bandeiras de identificação. Na última vez em que se propôs um imposto ao carbono, em 2009, depois de um voto positivo na Câmara de Representantes, controlada pelos democratas, o Senado, dominado pelos republicanos, rejeitou a proposta. Nas eleições de 2010, uma série de políticos que votou a favor do imposto ao carbono perderam suas cadeiras, o que contribuiu para que os republicanos assumissem o controle da Câmara. 

Agora, a única esperança para os que querem uma mudança é aguardar as eleições de 2016 e esperar que o novo presidente dos Estados Unidos seja capaz de mudar a situação. Este é um bom exemplo de por que os antigos gregos diziam que a esperança é a última deusa... 

O quadro é muito simples. O Senado norte-americano está integrado por 100 membros, o que significa que bastam 51 votos para liquidar qualquer projeto de lei sobre um imposto aos combustíveis fósseis. Na China, a situação é diferente. Na melhor das hipóteses, as decisões são tomadas pelo Comitê Permanente do Comitê Central, formado por sete membros, que são o verdadeiro poder no Partido Comunista.

Em outras palavras, o futuro do nosso planeta é decidido por 58 em uma população mundial de quase 7.7 bilhões de habitantes.

(*) Roberto Savio é fundador e presidente emérito da IPS – Agência de notícias Inter Press Service e publisher do site Other News.

Tradução: Daniella Cambaúva

Texto original: CARTA MAIOR

sábado, 19 de abril de 2014

Executivos dos EUA ganham 331 vezes mais do que um trabalhador médio

De todos os países do Ocidente, o que registra maior disparidade entre renda hoje em dia é os Estados Unidos, segundo várias medições e levantamentos.

Jim Lobe - IPS

Uma pesquisa divulgada nesta semana pela maior federação sindical dos Estados Unidos conclui que os diretores executivos das principais corporações do país ganharam 331 vezes mais dinheiro do que um trabalhador médio em 2013.

Segundo a base de dados de 2014 da Federação Americana do Trabalho e Congresso de Organizações Industriais (AFL-CIO, na sua sigla em inglês), os executivos de 350 empresas do país ganharam em média 11,7 milhões de dólares no ano passado, em comparação com um trabalhador médio, que recebeu 35.293 dólares. 

Esses mesmos chefes tiveram, aproximadamente, uma renda 774 vezes maior que os trabalhadores receberam no salário-mínimo federal por hora, 7,25 dólares, pouco mais de 15 mil dólares ao ano, de acordo com a base de dados. 

Outra pesquisa das principais 100 corporações norte-americanas divulgada no domingo, 13, pelo New York Times concluiu que os ganhos médios de uma liderança dessas empresas no ano passado foi ainda superior: 13,9 milhões de dólares. 

Esse relatório, o Equilar 100 CEO Pay Study, determina que, ao todo, esses altos executivos ganharam 1,5 bilhão de dólares em 2013, ainda mais do que no anterior. Como nos últimos anos, quem teve mais dinheiro foi Lawrence Ellison, diretor-executivo da Oracle: 78,4 milhões de dólares.

Os dois estudos, divulgados enquanto dezenas de milhões de pessoas fizeram sua declaração anual de impostos, colocam lenha no acalorado debate sobre o aumento da desigualdade de renda nos EUA. Esse fenômeno saltou para o primeiro plano com o movimento Occupy Wall Street de 2011. 

O presidente Barack Obama a descreveu como “o desafio que define nosso tempo”, enquanto começa a campanha pelas eleições legislativas de meio de mandato. Ele tentou dar uma resposta aumentando o salário-mínimo e aumentando os benefícios por desemprego e o pagamento de horas extras aos trabalhadores federais, entre outras medidas.

O fato de Obama ter colocado como alvo a desigualdade e os perigos que ela traz lhe fez ganhar certo respaldo intelectual, inclusive teológico, nos últimos meses. Em uma revisão de sua tradicional ortodoxia neoliberal, o Fundo Monetário Internacional (FMI) divulgou um estudo no último mês sobre os efeitos negativos da desigualdade no crescimento econômico e na estabilidade política. 

A diretora gerente do FMI, Christine Lagarde, advertiu que a desigualdade cria “uma economia da exclusão” e que ameaça “o valioso tecido que mantém nossa sociedade unida”. O papa Francisco também se pronunciou reiteradamente sobre os perigos que a desigualdade econômica pode provocar em uma reunião privada que realizou com Obama no mês passado no Vaticano. 

O relatório “Global Risks” do Fórum Econômico Mundial, publicado em janeiro, argumenta que a marcante desigualdade de renda será o maior risco para a estabilidade mundial na próxima década. 

Neste contexto, um novo estudo do economista francês Thomas Piketty, “O capital no século XXI”, que compara a desigualdade de hoje com a do final do século XIX, recebe críticas favoráveis em praticamente todas as publicações dominantes. A obra se baseia em dados de dezenas de países do Ocidente se remetendo aos dois séculos. Piketty expõe a necessidade de medidas radicais de redistribuição como um “imposto mundial ao capital” para reverter as atuais tendências em direção a uma maior desigualdade. O autor está em Washington para discorrer diante de especialistas de vários centros de pesquisa. 

A sentença da Suprema Corte de Justiça que, no começo do mês de abril, ampliou os limites das contribuições que os opulentos podem fazer aos partidos políticos e às campanhas eleitorais faz com que muitos temam que a democracia norte-americana vá por um caminho que leve a uma plutocracia. 

De todos os países do Ocidente, o que registra maior disparidade entre renda é os Estados Unidos, segundo várias medições. Em seu livro, Piketty mostra que esta atual desigualdade dos Estados Unidos ultrapassa a que a Europa tinha em 1990. 

A diferença de 331 para um entre o que os 350 diretores executivos e o trabalhador médio ganham é coerente com a brecha salarial característica da última década. Tal realidade contrasta drasticamente com a que existia depois da Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Em 1950, por exemplo, os salários dos diretores das corporações eram 20 vezes maiores que os dos trabalhadores. 

Em 1980, antes de o governo de Ronald Reagan (1981-1989) começar a implementar suas políticas econômicas da “magia de mercado”, tinha que multiplicar por 42 o salário de um trabalhador para obter o de um alto executivo, segundo Sarah Anderson, estudiosa veterana de compensações do Instituto de Estudos Políticos de Washington.

“Não acredito que ninguém, com exceção talvez de Larry Ellison, possa dizer que os gerentes de hoje são uma forma evoluída dos homo sapiens em comparação com seus predecessores de 30 ou 60 anos atrás”, zombou Bart Naylor, promotor de políticas financeiras da organização Public Citizen.

“Os que criaram a indústria farmacêutica e a da alta tecnologia... eram altos executivos e não drenavam a economia do modo como os executivos de hoje fazem”, disse à IPS. 

“O maquinário de recompensas aos executivos está arruinado”, acrescentou. 

O mortificante para os sindicalistas é que muitas dessas empresas argumentam que não podem se dar ao luxo de aumentar os salários de seus trabalhadores. 

“Pay Watch chama atenção sobre o nível caótico de compensações dos diretores executivos, enquanto os trabalhadores que criam esses lucros corporativos não conseguem sequer receber o suficiente para cobrir gastos básicos”, disse o presidente da AFL-CIO, Richard Trumka.

“Considerem os benefícios da aposentadoria do presidente da companhia Yum Brands, que possui o KFC, Taco Bell e Pizza Hut: mais de 232 milhões de dólares, com impostos diferidos”, disse Anderson.

“É bastante obsceno para uma corporação que emprega mão de obra barata”, completou. 

Atualmente, o Congresso legislativo considera várias medidas para abordar o assunto, apesar de a maioria contar com a oposição dos republicanos, que são maioria na Câmara dos Representantes. 

Entretanto, um projeto tributário apresentado pelo presidente do poderoso Comitê de Meios e Arbítrios da casa pode colocar fim a uma clara injustiça, a que exime os executivos de pagar impostos pelos “honorários por desempenho” que recebem quando cumprem metas estabelecidas pela diretoria da empresa. 

Além disso, a Comissão Nacional de Valores começa a aplicar uma norma pendente há tempos que exigirá que as corporações que têm ações na bolsa revelem os salários de seus diretores executivos, comparados com os de seus empregados em tempo integral, parcial, temporário e sazonal, tanto norte-americanos como estrangeiros. 

Tradução: Daniella Cambaúva

Texto original : CARTA MAIOR

quarta-feira, 16 de abril de 2014

As agriculturas do mundo e o negócio das sementes, fertilizantes e pesticidas

O percurso histórico de agravamento das desigualdades produtivas e da fome, no século XX, é coincidente com o da história das principais multinacionais.

Ricardo Vicente - Esquerda.net

Atualmente os discursos políticos e técnicos dominantes nas sociedades ocidentais condicionam brutalmente a opinião de qualquer cidadão sobre o que é hoje a agricultura no mundo. Propagam-se as ideias sobre os avanços tecnológicos da ciência e a sua facilidade de acesso: a mecanização, a comunicação, os processos de automatização, as ferramentas biotecnológicas, a obtenção de novas variedades, etc.

A sociedade absorve a ideia de que a população mundial é suportada por uma espécie de agricultura industrializada. Esta ideia é falsa, mas é sobre ela que se desenham e promovem políticas que são aplicadas local e globalmente. A agricultura é muito diversa e bastante desigual. Esta situação é fácil de constatar, não apenas comparando países “desenvolvidos” com países pobres mas também dentro de cada país.

Pensar e desenhar políticas agrícolas significa intervir sobre a vida de todos nós, mas em especial sobre a vida de uma grande fatia da população mundial que depende diretamente da agricultura enquanto atividade económica e de subsistência, cerca de 27% (FAO, 2010). Os dados da FAO relativos à população agrícola do ano 2010 mostram um globo onde a agricultura e a produção de alimentos andam a velocidades muito diferentes: 49% da população africana; 56% da África Central; 39% da Ásia; 47% da Ásia do sul; 16% da América Latina; 1,7% da América do Norte; 5,9% da Europa; 2% da Europa Central; 4,4% em Espanha; 10,3% em Portugal.

Segundo Mazoyer e Roudart (2001), 80% dos agricultores em África e 40 a 60% na América Latina e Ásia apenas dispõem de utensílios manuais e, entre estes, só 15 a 30% têm tração animal. Referem os mesmos autores que a diferença de produtividade do trabalho entre a agricultura manual menos produtiva do mundo e a agricultura motorizada e mecanizada mais produtiva, no espaço de um século (o séc. XX), passou de 1:10 para 1:500. No caso dos cereais, afirmam que um trabalhador isolado, na melhor situação, consegue produzir 2.000 toneladas, enquanto que, na pior situação, uma família produz apenas 1 tonelada, no espaço de um ano. Estas duas realidades encontram-se hoje, frequentemente, separadas não por um oceano mas por um muro ou vedação.
É sobre esta realidade desigual que se desenham acordos e políticas internacionais que interferem diretamente nas atividades agrícolas, mas é também neste quadro que atuam as diversas empresas multinacionais produtoras e distribuidoras de fatores de produção. Não por mero acaso, o percurso histórico de agravamento das desigualdades produtivas e da fome, no século XX, é coincidente com o da história das principais multinacionais que ainda hoje atuam no mercado mundial.

Foi no decorrer dos anos 60 e 70 que todo o processo se acelerou, com o surgimento crescente de variedades híbridas, adubos e pesticidas, possibilitando o melhoramento da relação semente-fertilizante e consequentemente o grande aumento das produções. Este processo ficou historicamente conhecido por revolução verde. Nos países e regiões mais pobres, onde eram maiores os riscos de fome consequentes do aumento da população e da fraca capacidade produtiva dos sistemas agrários, as consequências foram desastrosas. A maioria dos novos saberes e tecnologias não chegaram aos agricultores locais e as poucas que chegaram retiraram-lhes a autonomia, criando dependências entre agricultores e empresas fornecedoras de fatores. Na história destas empresas abundam as situações fraudulentas que provocaram a destruição de recursos endógenos e criaram dependências dos seus negócios. Surgiram diferenciais de produtividade brutais com a entrada em funcionamento de unidades produtivas modernas, os preços dos alimentos caíram, muitos agricultores abandonaram a atividade, destruíram-se redes de distribuição locais e surgiram novas dependências alimentares que espalharam a fome e o desespero. Iniciou-se uma mudança de paradigma, passou a haver produção de alimentos suficiente para alimentar a população mas a fome agravou-se devido à impossibilidade de acesso aos alimentos.
Todas as atuais principais empresas de produção e distribuição de sementes, adubos e pesticidas têm um histórico de atividade que iniciou antes ou durante a revolução verde e quase todas já tiveram reestruturações decorrentes da fusão com outras empresas. Há quase um século que atuam numa área de atividade onde o negócio é garantido e ainda não parou de crescer. Se analisarmos as suas histórias, facilmente constatamos que os seus negócios cresceram sem regras nem princípios, ao lado dos interesses financeiros e políticos das maiores potencias mundiais.

Alguns fatos históricos sobre as principais empresas multinacionais que operam no mercado se sementes, pesticidas e adubos:

Monsanto:
Surge em 1901 com a produção de sacarina. Produz vários equipamentos para a 2ª guerra mundial; em 1945 entra no negócio dos pesticidas; em 1960 é uma das principais produtoras de agente laranja, herbicida com efeito desfolhante aplicado na guerra do Vietname e que provocou sequelas brutais nos soldados e na população local; em 1964 lança o primeiro herbicida seletivo pré-emergência para a cultura do milho.

Syngenta:
Surge apenas em 1999, mas resultou de uma fusão empresarial onde se destacava a Geigy, que se fundou em 1935 e produzia inseticidas; em 1974 entrou no negócio das sementes.

Bayer:
Surge em 1863 como produtora de corantes e mais tarde dedica-se à indústria farmacêutica. Prestou serviços à Alemanha de produção de equipamentos necessários às duas guerras mundiais; Em 1956, Fritz ter Meer, depois de sete anos de prisão consequentes de colaboração em ensaios em seres humanos e tráfego de escravos provenientes de um campo de concentração em Aushwitz, foi nomeado presidente do conselho de supervisão da Bayer.

DuPont:
Iniciou em 1802 com a produção de pólvora; Produziu equipamentos para as duas guerras mundiais; Em 1943 participa no Manhattan Project e no desenvolvimento de uma bomba nuclear; Entre 1997 e 1999 comprou absorveu a empresa Pioneer, uma das maiores empresas que atuava no mercado mundial de sementes (desde 1926), altura em que lançou o primeiro milho híbrido comercializado. Em 1960 lança o inseticida Lanate.

Limagrain:
Surge em 1942 com a produção e venda de sementes.

BASF:
Fundada em 1865 iniciou atividade com a produção de corantes. Em 1913 sintetizaram amónio pela primeira vez. Produziram diversos equipamentos para as duas guerras mundiais. Em 1949 lançam um novo negócio com o herbicida U46.

DOW:
Foi criada em 1897 com um negócio de venda de descolorantes e sais. Forneceu materiais diversos para as duas guerras mundiais; nas primeiras duas décadas do século XX assumiu-se como um dos maiores produtores de pesticidas; entre 1951 e 1975 desenvolveu armas nucleares; entre 1965 e 1969 forneceu napalm e agente laranja para a guerra do Vietname.

Potash Corp
O histórico da empresa remonta a 1975, quando o Governo de Saskatchewan, Canadá, decidiu nacionalizar e agrupar o negócio de um conjunto de empresas estratégicas que operavam pelo menos desde 1950 na extração e venda de potássio e derivados. Em 1989 o grupo foi privatizado.

Mosaic Company
Foi lançada em 2004, nos Estados Unidos, e resultou da fusão de duas empresas, a Cargill e a IMC-Global que tinha histórico de atividade desde 1909.

Yara
Fundada em 1905, 10 anos depois, durante a primeira guerra mundial, fornecia nitratos de cálcio e de amónio à Alemanha e aos Aliados.

OCP Group
Formado em 1920, em Marrocos, na extração e comercialização de fósforo e derivados.

(*) Ricardo Vicente é engenheiro agrônomo. Publicado em Esquerda.net

Texto original: CARTA MAIOR

quarta-feira, 9 de abril de 2014

Amnésia histórica sobre o Golpe Militar de 1964!

Desde a época (década de 70 do século XX), em que ocorreu o Golpe Militar, sempre leio livros e textos sobre o assunto. Assistir vários documentários e programas jornalísticos sobre o tema. Sempre escutava do meu pai que os americanos tinham interesse em dividir o Brasil em dois países e ele sempre comentava a presença militar das tropas dos EUA em nosso território, mesmo antes do golpe de 1964. Eu sempre me perguntei: como o meu pai, morando em uma cidade do interior (Itabaiana-SE) do Brasil, tinha conhecimento da presença dos EUA em nosso território e o interesse que eles tinham em dividir o Brasil em dois países (eu achava que meu pai estava inventado)? Era assunto comum das conversas, dos idosos da época, terem vistos Jeeps com soldados falando de uma maneira que ninguém entendia nada! De que nacionalidade eram esses soldados? Segundo meu pai eram militares americanos procurando riquezas em nosso território!!!

Sempre notei certo distanciamento dos diversos jornalistas e historiadores (não se se proposital por parte de todos) sobre o envolvimento das empresas de comunicação e um distanciamento ainda maior sobre a participação do EUA no Golpe Militar de 1964. Lembrar que a participação de militares, em tentativas de golpes, contra o Estado brasileiro, vem desde o final do século XIX. Eu particularmente considero a Proclamação de República um Golpe Militar.

Ex-ministro Almino Affonso
Nos últimos dias, percebe-se que a grande imprensa e diversos historiadores querem colocar a culpa, do golpe, nos que estavam governando o país por não tentarem se opuser aos golpistas. Alegam que eles tinham o apoio da grande maioria da população. O vídeo abaixo mostra um debate onde claramente existe a tentativa de se colocar a culpa do golpe na inercia de quem era governo na época. Isso até que o sabatinado coloca o caso da influência dos EUA e mesmo assim, até o final do debate, não se coloca a importância que teve os grandes meios de comunicação na operacionalização do famigerado Golpe Militar. O vídeo abaixo é uma sabatina com o ex-ministro do trabalho Almino Affonso, no governo João Goulart. Assistam ao vídeo para tirarem as suas próprias conclusões?

segunda-feira, 7 de abril de 2014

Lula não precisa ser candidato

A Folha reteve por 24 horas o dado capaz de relativizar esmagadoramente a queda de seis pontos nas intenções de votos na presidenta Dilma.

por: Saul Leblon



Por que o Datafolha não inclui em suas enquetes algumas perguntas destinadas a decifrar o modelo de desenvolvimento intrínseco à aspiração mudancista majoritária na sociedade brasileira, segundo o próprio Instituo?

Por que o Datafolha não pergunta claramente a esse clamor se ele inclui em seu escopo de mudanças um retorno às prioridades e políticas vigentes quando o país era governado pelo PSDB, com a agenda que o dispositivo midiático tenta restaurar com o lubrificante do alarmismo noticioso?

Não se trata de introduzir proselitismo nos questionários de sondagem. É mais transparente do que parece. E de pertinência jornalística tão óbvia que até espanta que ainda não tenha sido feito.

Por exemplo, por que o Datafolha não promove uma simulação que incluiria Fernando Henrique Cardoso e Lula como candidatos teóricos e assim avalia as preferências entre os modelos e ênfases de desenvolvimento que eles historicamente encarnam?

Por que o Datafolha não pergunta claramente ao leitor se prefere a Petrobras --e o pré-sal, que é disso que se trata, sejamos honestos-- em mãos brasileiras ou fatiada e privatizada?

Por que o Datafolha não investiga quais políticas e decisões estão associadas à preferência pelo petista que há 12 anos está sob bombardeio ininterrupto da mídia e, ainda assim, conserva 52% das intenções de voto num país seviciado pelo monopólio midiático?

Por que o jornal que é dono da pesquisa –em mais de um sentido-- não explicita em suas análises as relações (ostensivas) entre a resistência heroica do recall desfrutado por Lula; o desejo majoritário de mudança na sociedade e o vexaminoso arrastar dos pés-de-chumbo do conservadorismo, Aécio e Campos?

Por que a Folha reteve por 24 horas o dado capaz de relativizar esmagadoramente o impacto da queda de seis pontos que teria marcado as intenções de votos na presidenta Dilma –mas que ainda assim vence com folga (38%) seus dois principais oponentes juntos (26% de Aécio e Campos)?

O dado em questão não é singelo.

Só divulgado nesta noite de domingo –sem espaço na manchete e sequer registro na primeira página do diário dos Frias!-- ele tem caibre para dissolver em partículas quânticas tudo o que foi dito no final de semana sobre a derrocada do governo na eleição para 2014.

Qual seja, a opinião de Lula -- colheu o Datafolha-- é uma referência positiva de impacto avassalador sobre as urnas de outubro: seu peso ordena e hierarquiza a definição de voto de nada menos que 60% do eleitorado brasileiro.

Seis em cada dez eleitores tem em Lula uma baliza do que farão na cabine eleitoral.

Segundo o Datafolha, 37% deles votariam com certeza em um candidato indicado pelo petista; e 23% talvez referendassem essa mesma indicação.

Note-se que os estragos que isso deixa pelo caminho não são triviais e de registro adiável.

Se divulgados junto com a pesquisa das intenções de voto, esmagariam, repita-se, o esforço do tipo ‘vamos lá, pessoal’, que os comodoros do conservadorismo tentaram injetar na esquadra de velas esfarrapadas de Campos e Neves.

Vejamos: ao contrário do que acontece com o cabo eleitoral de Dilma, 41% dos eleitores rejeitariam esfericamente um nome apoiado por Marina Silva –Eduardo Campos encontra-se nessa alça de mira contagiosa, ou não?

Já a rejeição a um candidato apoiado por FC é de magníficos 57%.

Colosso. Sim, quase 2/3 do eleitorado, proporção só três pontos inferior à influência exercida por Lula, foge como o diabo da cruz da benção dada pelo ex-presidente tucano a um candidato; apenas 23% cogitariam sufragar um nome apoiado por ele.

Esse, o empolgante futuro reservado ao presidenciável Aécio Neves, ou será que a partir de agora ele imitará seus antecessores de dificuldades e esconderá o personagem que o imaginário brasileiro identifica ao saldo deixado pelo PSDB na economia e na política do país?

O fato é que a virada anti-petista, ou anti-governista, ou ainda anti-dilmista que o dispositivo midiático tenta vender –e o fez com notável sofreguidão neste final de semana, guarda constrangedoramente pouca aderência com a realidade.

Exceto se tomarmos por realidade as redações da emissão conservadora, a zona sul do Rio ou o perímetro compreendido entre os bairros de Higienópolis, Morumbi e Vila Olímpia, em São Paulo, a disputa é uma pouco mais difícil.

Não significa edulcorar os desafios e gargalos reais enfrentados pelo país.

Mas na esmagadora superfície habitada por 60% da população brasileira o jogo pesado da eleição de 2014 envolve outras referências que não apenas a crispação do noticiário anti-petista em torno desses problemas.

Por certo envolve entender quem é quem e o que propõe cada projeto em disputa na dura transição de ciclo econômico em curso – e nessa luta ideológica pela conquista e o esclarecimento de corações e mentes, o governo Dilma e o PT estão em débito com a sociedade.

Sobretudo, o que os dados mais recentes indicam é que a verdadeira disputa de projetos precisa de mais luz e mais desassombro por parte dos alvos midiáticos.

Os institutos de pesquisas, a exemplo do Datafolha, em grande medida avaliam o alcance do seu eco quase solitário.

Bombardeia-se a Petrobras para em seguida mensurar o estrago que os obuses causaram na resistência adversária. Idem, com o tomate, a standard & Poor’s, etc., etc., etc.

Ao largo das manchete do Brasil aos cacos, porém, seis em cada dez brasileiros aguardam o que tem a dizer aqueles que se tornaram uma referencia confiável pelo que fizeram para a construção da democracia social nos últimos anos.

É aí que Lula entra. E o PT deve cuidar para que entre não apenas rememorando o passado, do qual já é uma síntese histórica.

Mas que coloque essa credibilidade a serviço de uma indispensável repactuação política do futuro, contra o roteiro conservador do caos que lubrifica a rendição ao mercadismo.

Dizer que Dilma perdeu seis pontos e retardar a divulgação do que fariam 60% dos eleitores diante de um apelo de Lula, é uma evidência do temor que essa agenda e esse cabo eleitoral causam no palanque de patas moles que a mídia, sofregamente, carrega nas costas. 

Texto original neste endereço: CARTA MAIOR

sexta-feira, 4 de abril de 2014

O MUNDO PÓS-CRIMEIA


(Jornal do Brasil) - O G-8, que agora volta a ser G-7, “expulsou” na semana passada, a Rússia, depois de suspender a reunião que haveria em Sochi. A reação do chanceler Serguei Lavrov foi a de declarar que, como grupo informal, o G-8 não pode expulsar ninguém, além de lembrar que, para Moscou, comparecer ou não a essas reuniões não muda absolutamente nada.

Pertencer ou não ao G-8 é uma questão irrelevante para os russos, que se sentem muito mais à vontade com os BRICS- justamente o grupo que fomentou a criação do G-20, em contraposição ao clubinho que tradicionalmente reunia as maiores – e agora não tão poderosas - economias do Ocidente.

Tanto isso é verdade que os BRICS, reunidos a margem da Cúpula de Desarmamento Nuclear, em Haia, declararam apoio à Rússia, com relação às sanções unilaterais impostas - sem aprovação da ONU - pelos países ocidentais.

Além disso, o Grupo também deixou claro, no comunicado conjunto emitido ao final da reunião, que não aceitará a suspensão – anunciada pela Ministra das Relações Exteriores da Austrália, Julie Bishop – da participação russa na próxima Conferência do G-20, que será realizada no mês de novembro, em Brisbane.

Os BRICS controlam um quarto dos votos do G-20, no qual costumam votar juntos, assim como no Conselho de Segurança da ONU.

Com a “expulsão” da Rússia do G-8, o que muda no mundo pós-anexação da Crimeia?

Longe de isolar Moscou, os EUA e a UE estão conseguindo apenas reforçar os laços que a unem ao resto do mundo, começando por Pequim, Nova Delhi, Brasília e e Johannesburgo.

No dia 18 de março, Dimitri Peskov, o porta-voz do Kremlin, já anunciou o que vem por aí, ao afirmar que, se a UE e os Estados Unidos insistirem nas sanções, a Rússia irá cortar as importações de produtos europeus e norte-americanos.

Com 177 bilhões de dólares em superávit no ano passado, e quase 600 bilhões de dólares em reservas internacionais, a Rússia é um dos maiores importadores de alimentos dos EUA e passaria a comprar os grãos, a carne e o frango de que necessita do Brasil.

Com relação à questão geopolítica, a reação do Ocidente à ocupação, pelos russos, de um território que historicamente lhes pertenceu até a década de 1950, e que só deixou de estar associado à URSS há coisa de 30 anos, alertou e está aproximando Pequim, Moscou e Nova Delhi.


Os três tem interesse em estabelecer uma zona de estabilidade no espaço euroasiático – Rússia e China já fazem parte do Acordo de Xangai – e em manter os países que estão em suas fronteiras longe da interferência ocidental.

A Alemanha - que conhece melhor os russos que os norte-americanos - já entendeu isso.

Der Spiegel divulgou, na semana passada, que a Rússia e a China “se preparam para assinar um acordo de cooperação político-militar” que poderia estabelecer uma plataforma de defesa necessária à geração de um “novo reequilíbrio de forças no âmbito mundial”.

Os chineses se abstiveram oficialmente na votação a propósito da Resolução do Conselho de Segurança da ONU sobre o referendum da Crimeia. Mas o jornal do Comitê Central do Partido Comunista Chinês, o Renmin Ribao – Diário do Povo, não deixou dúvidas sobre qual é a posição de Pequim, ao afirmar, em editorial, que: “o espírito da Guerra Fria está se debruçando sobre a Ucrânia”, o que transforma “a aproximação estratégica entre a China e a Rússia em um fator-âncora para a estabilidade global” – e que “a Rússia, conduzida por Vladimir Putin, deixou claro para o Ocidente, que em uma Guerra Fria, não há vencedores”. 

O que pode mudar nesse novo mundo pós- anexação da Crimeia, para o Brasil?

Segundo maior exportador de commodities agrícolas e o primeiro em carnes, o Brasil tem que aproveitar o momento para se posicionar como um sócio estratégico para o abastecimento dos russos, nesse quesito, mostrando também a chineses e indianos, grandes clientes do agronegócio brasileiro, que é um fornecedor confiável, que pode substituir os Estados Unidos no atendimento ao BRICS, enquanto estes não puderem alimentar seus cidadãos com produção própria.

Fora isso, é preciso também aproveitar a era pós-Criméia para renegociar as parcerias, do ponto de vista tecnológico e comercial, com relação a esse Grupo, que domina mais de 40% da população e da extensão territorial e um quarto do PIB mundial.

Ao contrário do que ocorre com a UE e os EUA, fortemente protecionistas e intervencionistas, que sobretaxam as importações e gastam, em áreas como a agricultura e a defesa, centenas de bilhões de dólares em subsídios, o Brasil tem conseguido aumentar seu superávit com os outros BRICS nos últimos anos, mesmo que ainda não tenha se inserido na cadeia de produção e consumo de bens de maior valor agregado desses grandes mercados.

Parte disso decorre, também, da falta de estratégia e de sobrados preconceitos de parte ponderável de nosso empresariado.

Quantos shoppings centers brasileiros existem na China? E em Moscou ou São Petersburgo? E em regiões de altíssimo poder aquisitivo dessas cidades? Quais são as marcas brasileiras de excelência, nos ramos têxtil, de calçados, de perfumaria, que os chineses e os russos conhecem? Que restaurantes, que franquias?


Pródigo em emprestar bilhões de dólares a multinacionais que operam aqui dentro, o BNDES precisa reunir a APEX e o pessoal da área de varejo de luxo, para estabelecer uma estratégia de inserção do Brasil nos BRICS – e de resto na África e na América Latina - que vá além da realização de feiras e do café, do açúcar, do couro, do minério de ferro, da soja e do suco de laranja. 

Precisamos – e o momento é propício para isso - começar a incentivar e dar decidido apoio à internacionalização de empresas brasileiras, para que comecemos a receber algum dinheiro do exterior - ou em breve nos converteremos apenas em uma reserva de mercado para investidores estrangeiros, que sugaram do país, no ano passado, em remessas de lucro, quase 30 bilhões de dólares em reservas internacionais.

O fortalecimento da Rússia, da China e da Índia interessa ao Brasil, não apenas do ponto de vista econômico, mas, principalmente, do geopolítico.

Essas são as únicas nações que podem impedir, em um futuro próximo, a consolidação do projeto anglo-saxão de domínio que promoveu um verdadeiro assalto ao resto do mundo, nos últimos 200 anos.

Os BRICS – incluindo o Brasil – não podem derrotar os Estados Unidos e a União Europeia.

Mas os EUA e a UE também não podem derrotar os BRICS. E para o futuro do mundo, é isso o que importa.

Texto replicado : MAURO SANTAYANA

terça-feira, 1 de abril de 2014

Somos educados para o analfabetismo econômico

Somos treinados a concordar com coisas que não fazem sentido. Por exemplo, pagamos um Mineirão dia, em juros da dívida, e achamos que a Copa é o problema.

Antonio Lassance


Os barões ladrões que rebaixam o Brasil

A agência Standard & Poors, uma das que fazem classificação de risco de países e empresas, alterou a nota do Brasil para pior: de BBB para BBB-.

E se alguém acha que esse é um debate econômico, está redondamente enganado. A economia continua sendo um assunto importante demais para ficar restrito aos economistas.

A elevação ou o rebaixamento da nota de um país são entendidas, mundo afora, como um sinal do quanto um país é rentável e confiável.

Confiável segundo agências de classificação especializadas em dizer aos grandes financistas internacionais onde investir seu dinheiro para obter maiores lucros, com a garantia de que não tomarão um calote.


A Standard & Poors foi criada no século XIX, nos Estados Unidos, por Henry Varnum Poor, em plena época dos chamados barões ladrões.

Os grandes investidores que Henry Poor avaliava e recomendava ganhavam dinheiro com ferrovias, siderúrgicas e empresas de petróleo.

Uma parte significativa dos lucros desses magnatas vinha da apropriação de terras e outros ativos públicos e da arte de usar e roubar o dinheiro de pequenos investidores desavisados, que depositavam suas economias no nascente mercado de ações.

Esses barões ladrões do século XIX não eram tão diferentes dos mais recentes, que causaram a grande crise financeira de 2008 e 2009. Todos bem recomendados pela Standard & Poors.

A avaliação de risco do Brasil basicamente expressa o quanto o país continua sendo um dos paraísos mundiais do rentismo, a mágica de ganhar dinheiro com o trabalho dos outros. Quanto mais a política econômica de um país é ditada pelos interesses dos rentistas, melhor a nota.

Para não ser rebaixado pelas agências, um país precisa rebaixar sua política econômica. Tem que seguir uma receita orientada pelo objetivo de fazer crescer o volume de dinheiro movimentado pelas finanças, e não o de fazer crescer o país.

E ainda tem gente que acha que nosso grande problema é a Copa

Se o Brasil sofreu o rebaixamento de um único pontinho, “o que eu tenho a ver com isso?”, pode e deve perguntar o cidadão. Como diria o velho Brecht, tem a ver com o custo de vida, o preço do feijão, da farinha, do aluguel, do sapato e do remédio. Não deveria ter, mas tem.

Para dizer a verdade, esse rebaixamento tem a ver até com a Copa do Mundo de futebol, pois, enquanto tem gente preocupada, com razão, com o custo dos estádios, esqueceram-se do principal.

Para se ter uma ideia: o País vai gastar cerca de 8 bilhões em estádios. É, de fato, muito dinheiro. Mas o analfabetismo econômico ajuda todo mundo a se esquecer de fazer a conta que importa.

O Brasil gastou, em 2013, R$ 248 bilhões com o pagamento de juros, segundo o Banco Central. Pois bem, dividindo esse valor pelos 365 dias do ano, pagamos mais de R$ 679 milhões por dia.

Vamos comparar com a copa? Dá quase para construir um estádio do Mineirão por dia. Aliás, registre-se que o Mineirão só tem R$11 milhões de dinheiro público envolvido em seu financiamento. O restante será pago pela iniciativa privada. Dois dias de juros da dívida pagam mais de um Maracanã.

E ainda tem gente que acha que a copa é o absurdo dos absurdos do gasto em dinheiro público. É a prova cabal do quanto perdemos a noção das coisas.

Perdemos a noção de grandeza e a de proporção. Com isso, perdemos também o senso crítico em relação a esse buraco negro de nossas finanças públicas. Depois, perdemos o foco das prioridades.

Finalmente, erramos o alvo das manifestações. Tem gente malhando o Judas (a Copa, a Fifa) fingindo que está enfrentando o Império Romano. Se não for piada, é teatro.

Quem sabe, um dia, alguém se lembre de escrever a frase em um cartaz: “Cada 1% de aumento na taxa de juros custa R$20 bilhões aos brasileiros”. É uma mensagem mais consistente e valiosa do que “Não é só pelos 20 centavos”.

Vinte bilhões são duas vezes e meia, por ano, o que iremos investir em estádios, que serão pagos em 15 anos em empréstimos ao BNDES – ou seja, dinheiro que voltará aos cofres públicos.

O rebaixamento do debate econômico nos fez perder a noção das coisas

O verdadeiro rebaixamento que o país sofre não é de hoje e não é só o da Standard & Poors. O mais prejudicial de todos é o rebaixamento do debate sobre os rumos da economia do país.

O Brasil continua sendo um carro em que os mecânicos do mercado puxam o freio de mão e culpam o motorista pela dificuldade de acelerar o crescimento, melhorar a infraestrutura e a qualidade do serviço público.

A primeira mudança para uma tomada de consciência é superar a visão de que os juros são um problema só da macroeconomia e que sua conta é paga pelo governo. Não é.

O governo é apenas quem assina o cheque. Quando falamos “o Brasil”, muita gente ainda acha que estamos falando do governo. Perdemos, talvez na ditadura, e ainda não recuperamos a noção de que o Brasil são os brasileiros.

Quem confunde isso com nacionalismo barato e governismo acaba por reproduzir, às avessas, a velha maneira de pensar ensinada pela própria ditadura. Puro analfabetismo cívico.

Quem paga a conta cara dos juros altos são todos os que pagam impostos, principalmente os mais pobres, que, proporcionalmente, pagam mais impostos.

A luta para inverter prioridades precisa convencer milhões de brasileiros de que é preciso virar as finanças públicas de cabeça para baixo.

Hoje, a principal função do Estado brasileiro é pagar juros, os maiores do planeta. O Brasil é um dos três países que mais comprometem recursos públicos com o pagamento de juros, em proporção do PIB, conforme diz até o Fundo Monetário Internacional.

A educação, a saúde, a segurança pública e os investimentos em infraestrutura são pagos com o troco do que sobra do pagamento de juros.

Somos educados para o analfabetismo econômico

O problema que temos em mãos lembra o alerta feito por um professor de Matemática, com cara de cientista maluco, chamado John Allen Paulos, em seu livro “O analfabetismo em Matemática e suas consequências" (publicado originalmente em 1988).

O divertido livro de Paulos relembra casos famosos que denunciam a falta nem tanto de habilidade, mas de uso prático e corriqueiro até das operações matemáticas mais simples.

A principal denúncia de Paulos é ao quanto nos desacostumamos da operação mais essencial de todas, não exclusiva da Matémática: pensar sobre os problemas e raciocinar logicamente sobre eles.

Paulos nos avisa que isso é um perigo. Corremos riscos diários com essa nossa preguiça de pensar logicamente sobre os problemas e com a nossa incapacidade de extrair resultados práticos e numéricos dessas operações.

O que acho mais curioso nesse livro, e muito similar ao que acontece em nosso debate econômico, é que esse tipo de analfabetismo é ensinado diariamente.

É como se fôssemos educados para o analfabetismo. Somos treinados a esquecer a lógica dos argumentos e a concordar com coisas que não fazem o menor sentido.

Paulos usa, dentre tantos exemplos, o livro “Viagens de Gulliver”, de Jonathan Swift (1667-1745). O matemático nos mostra como o autor de Gulliver, ao descrever um gigante em uma terra de pequeninos (Lilliput), lascou o livro de grandezas absurdas, que não fazem o menor sentido.

As histórias de Gulliver são de 1726. Para não parecer tão distante, Paulos escreveu, em 1995, “Como um Matemático lê os Jornais”, publicado no Brasil como “As Notícias e a Matemática” ou “Como um Matemático lê jornal”.

Acertou na mosca. A imprensa é useira e vezeira em nos deseducar a usar não só os números, mas a lógica. É assim também com as notícias cujo título é contraditado pelas próprias matérias, armadilha comum aos que leem jornal com o espírito crítico repimpado e babando no sofá.

Terrorismo fiscal, um atentado ao raciocínio lógico

A notícia sobre o rebaixamento da nota do Brasil foi uma farra nesse sentido de propagar o analfabetismo econômico.

A conclusão enfiada goela abaixo é a de que o País precisa aumentar seu rigor fiscal e seu controle sobre a inflação.

Ou seja, o Brasil precisaria urgentemente cortar gastos e continuar elevando sua taxa de juros. Como assim, se o nosso principal gasto extraordinário é com juros? Não faz sentido, faz? Depende pra quem.

A ideia brilhante para atender às agências de risco é cortar o que o governo faz para pagar mais juros. Faz todo o sentido – para o financismo, não para a maioria dos brasileiros.

Mal começou o ano, os problemas sazonais dos preços dos alimentos, que impactam também os alugueis, são traduzidos na conclusão disparatada e tão absurda quanto os números das “Viagens de Gulliver”.

A lógica é a seguinte: se choveu muito, ou se choveu pouco, a inflação de alimentos elevou-se. Solução: aumentem os juros. Elevando-se os juros, as pessoas vão comer menos alimentos e os agricultores assim plantarão mais alimentos. Com juros mais altos, choverá a quantidade certa, no lugar certo. Entendeu? Nem eu.

O preço do tomate disparou, então o remédio é aumentar os juros. A pessoa irá desistir de levar tomates quando pensar que a taxa Selic está mais alta. Quando a taxa Selic alcança dois dígitos, as pessoas trocam a macarronada a bolonhesa por lasanha ao molho branco.

Os alugueis subiram, então os juros precisam aumentar, pois, em Lilliput, a terra de quem pensa pequeno, quando os juros sobem, ao contrário do que ocorre em qualquer lugar do mundo, mais imóveis são construídos e os alugueis baixam.

Engraçado, pensávamos que seria o contrário; que, com juros mais baixos, mais pessoas poderiam comprar seus próprios imóveis e se livrar dos alugueis. Aumentaria a própria oferta de imóveis e os aluguéis cairiam. Difícil entender os lilliputianos.

Essa falta de parâmetros e de noção do debate econômico causa uma deficiência grave em nossas políticas públicas.

Figuras exemplares que alertam sobre isso, como fazem Paulo Kliass, Ladislaw Dowbor e Amir Khair aqui na Carta Maior, há muito tempo, falam de coisas sobre as quais deveríamos não só prestar mais atenção, mas usar em nosso dia a dia.

Os movimentos sociais precisam se lembrar de explicar essa lógica dos argumentos aos seus militantes.

Precisam fazer as contas de quantos trabalhadores do setor público poderiam ser contratados e pagos com esses valores estratosféricos e escatológicos pagos com juros.

Precisam mostrar para a opinião pública quanto custa o reajuste de salários de suas categorias e compará-los com o que se paga em juros aos banqueiros.

Quem sabe, uma boa ideia seria acampar no gramado em frente ao Banco Central toda vez que ocorre uma reunião do Copom. E por que não fazer pelo menos um dia de luto quando se decreta aumento na taxa de juros.

Imagine todo mundo com a fitinha preta no braço explicando quanto vai nos custar pagar 0,25 ou meio ponto percentual a mais na taxa Selic, e quanto deixará de ser aplicado em prioridades para o país.

Pode até não ajudar a pressionar a decisão do Comitê de Política Monetária (Copom) do Banco Central, mas, pelo menos, seria um sinal de quantas pessoas terão se livrado do analfabetismo econômico atroz que nos acomete.

(*) Antonio Lassance é cientista político.


Texto retirado de : CARTA MAIOR