sexta-feira, 1 de dezembro de 2017

Brasil, refém de uma ideia perigosa

por Pedro Rossi* — publicado 28/11/2017 15h03, última modificação 28/11/2017 17h01

O livro de Mark Blyth, recém-lançado no País, mostra que a austeridade não passa de um programa de distribuição de renda e riqueza ao contrário


A editora Autonomia Literária marca um gol de placa ao lançar a edição brasileira do consagrado livro “Austeridade: a história de uma ideia perigosa”, de Mark Blyth. A austeridade é marca registrada da crise econômica brasileira e pré-requisito para se entender o sentido dos sacrifícios impostos à população brasileira: a precarização dos serviços públicos, a redução das transferências sociais, os milhões de novos desempregados etc.

Com a leitura do livro se entende que a austeridade tem uma longa história de fracassos e que, no fundo, trata-se de um programa de distribuição de renda e riqueza ao revés. Para além de perigosa, a austeridade é uma ideia falaciosa, repetida incessantemente pelo governo e pelos meios de comunicação no Brasil. Desconstruir essa ideia e a retórica que a sustenta é uma tarefa necessária.


A defesa da austeridade sustenta que, diante de uma desaceleração econômica e de um aumento da dívida pública, o governo deve realizar um forte ajuste fiscal, preferencialmente com corte de gastos públicos em detrimento de aumento de impostos. Esse ajuste teria efeitos positivos sobre o crescimento econômico ao melhorar a confiança dos agentes na economia.


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Ou seja, ao mostrar “responsabilidade” em relação às contas públicas, o governo ganha credibilidade junto aos agentes econômicos e, diante da melhora nas expectativas, a economia passa por uma recuperação decorrente do aumento do investimento dos empresários, do consumo das famílias e da atração de capitais externos. A austeridade teria, portanto, a capacidade de reequilibrar a economia, reduzir a dívida pública e retomar o crescimento econômico.

Por vezes esse discurso é acompanhado da metáfora que compara o orçamento público ao orçamento doméstico, na qual o governo, assim como uma família, não deve gastar mais do que ganha. Logo, diante de uma crise e de um aumento das dívidas, deve-se passar por sacrifícios e por um esforço de poupança.

Os anos de excessos, portanto, devem ser remediados com abstinência e sacrifícios e a austeridade é o remédio. No caso brasileiro é comum a análise de que os excessos (de gastos sociais, de aumento de salário mínimo, de intervencionismo estatal etc.) nos governos do Partido dos Trabalhadores (PT) estão cobrando os sacrifícios necessários. Como na fábula da cigarra e da formiga, os excessos serão punidos e os sacrifícios, recompensados.

Esse discurso tem inúmeras fragilidades. A primeira delas está na mediação entre o ajuste fiscal e o crescimento econômico. Argumenta-se que o ajuste fiscal melhora a confiança nos agentes que, por sua vez, passam a investir e consumir. Contudo, um empresário não investe porque o governo fez ajuste fiscal, e sim quando há demanda por seus produtos e perspectivas de lucro.

Nesse ponto, a contração do gasto público não aumenta a demanda no sistema. Ao contrário. Essa contração, por definição, reduz a demanda no sistema. Em uma grave crise econômica, quando todos os elementos da demanda privada (o consumo das famílias, o investimento e a demanda externa) desaceleram, a crise se agrava caso o governo contraia a demanda pública.

Os efeitos da austeridade podem ser entendidos de forma intuitiva. O gasto de alguém é a renda de outro: quando alguém gasta, alguém recebe. Quando o governo contrai o gasto, milhões de cidadãos passam a receber menos, o que tem impactos negativos na renda privada. É uma verdade contábil dizer que o gasto público é a receita do setor privado, assim como a dívida pública é ativo privado e o déficit público é o superávit do setor privado.

Quando o governo corta gastos com um investimento destinado a uma obra pública, por exemplo, o efeito é direto sobre a renda e o emprego, uma vez que a empresa que seria contratada via licitação deixa de contratar empregados e comprar materiais. Da mesma forma, o corte de gastos em transferências sociais reduz a demanda daqueles que recebem os benefícios e desacelera o circuito da renda.

Nesse sentido, em uma economia em crise, a austeridade gera um ciclo vicioso no qual o corte de gastos reduz o crescimento, o que deteriora a arrecadação e piora o resultado fiscal... E leva a novos cortes de gastos. Ou seja, em um contexto de crise econômica, a austeridade é contraproducente e tende a provocar a queda no crescimento e o aumento da dívida pública, resultado contrário ao que se propõe.

Isso quer dizer que o governo nunca deve cortar gastos? Não. Quando a economia está aquecida, o corte do investimento na obra pública pode não ter um efeito negativo na economia, uma vez que a empresa que seria contratada pelo governo provavelmente será contratada por outro indivíduo ou empresa. Da mesma forma, a redução das transferências sociais pode ter impactos distributivos, mas não necessariamente contracionistas.

O mesmo não ocorre quando há escassez de demanda, desemprego e excesso de capacidade ociosa na economia: nesse caso, a demanda pública não só não gera inflaçãocomo aumenta a renda e o emprego. Ou seja, a demanda pública pode e deve ser mantida e ampliada em períodos de crise.

Isso implica dizer que a administração do orçamento do governo não somente não deve seguir a lógica do orçamento doméstico, mas deve seguir a lógica oposta. Quando as famílias e empresas contraem o gasto, o governo deve ampliar o gasto de forma a contrapor o efeito contracionista do setor privado.

Além disso, a comparação entre o orçamento público e o familiar é incoerente, pois desconsidera três fatores essenciais. O primeiro é que o governo, diferentemente das famílias, tem a capacidade de definir o seu orçamento. A arrecadação de impostos decorre de uma decisão política. Está ao alcance do governo, entre outras medidas, tributar os mais ricos ou as importações de bens de luxo, para não fechar hospitais. Ou seja, diferentemente do orçamento familiar, o orçamento público decorre de uma decisão coletiva sobre quem paga e quem recebe, quanto paga e quanto recebe.

O segundo fator que diferencia o governo das famílias é que, quando o governo gasta, parte dessa renda retorna sob a forma de impostos. Ou seja, ao acelerar o crescimento econômico com políticas de estímulo, o governo está aumentando também a sua receita.

Por fim, o terceiro fator, não menos importante: as famílias não emitem moeda, não têm capacidade de emitir títulos em sua própria moeda e não definem a taxa de juros das dívidas que pagam. O governo faz tudo isso. Portanto, a metáfora que compara os orçamentos público e familiar é dissimulada e desvirtua as responsabilidades que a política fiscal tem na economia, em suas tarefas de induzir o crescimento e amortecer os impactos dos ciclos econômicos na vida das pessoas. 

O lançamento do livro ocorrerá no dia 30 de novembro, em São Paulo (SP). Para mais informações: https://www.facebook.com/events/542154376118820/

*Pedro Rossi é professor do Instituto de Economia da Unicamp, diretor do Centro de Estudos de Conjuntura e Política Econômica da Unicamp e coordenador do Conselho Editorial do Brasil Debate.

Texto original: CARTA CAPITAL

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