quarta-feira, 25 de abril de 2018

MC Loma, Kondzilla, MC Beijinho: o Brasil se emancipa nas telas?

por Felipe Arrojo Poroger* — publicado 24/04/2018 00h30, última modificação 23/04/2018 18h23

Os alertas e as consequências políticas da popularização de câmeras digitais

O trio de meninas MC Loma, de quinze anos, e as Gêmeas Lacração ganhou clipe de Kondzilla
“Filho, não é incrível como, daqui a mil anos, as pessoas poderão assistir a vídeos de nossas vidas?”. Era 2007, no Museu de Arte de São Paulo, quando meu pai lançou a questão e seguiu para o próximo quadro. Eu, paralisado, ainda me debato com ela.

Por mais simples que a pergunta possa parecer em um primeiro momento, suas implicações não são triviais: afinal, muito mais do que um exercício divertido de imaginação, vislumbrar um passado integralmente conservado em registros filmados concretiza a obsessão humana em armazenar – e portanto controlar – a experiência que a memória não pôde reter.
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É justamente neste ponto – e neste país, historicamente notório por calar suas minorias - que o fascínio de meu pai começa a se desdobrar em múltiplas questões: diante da infinidade de registros, quais imagens produzidas efetivamente chegarão aos nossos descendentes mais longínquos? E principalmente: o que tais imagens representarão em termos políticos, históricos e sociais? A partir delas, quais serão as conclusões formuladas sobre o Brasil contemporâneo?

No último 23 de janeiro, três garotas de Jaboatão de Guararapes (PE) resolveram lançar um vídeo musical no YouTube. Gravado com um celular, o clipe caseiro da música “Envolvimento”, também composta por elas, demorou apenas três semanas para tornar-se a mais ouvida do Brasil na plataforma Spotify, somando mais de cinco milhões de acessos.

O trio de meninas, MC Loma, de quinze anos, e as Gêmeas Lacração, três anos mais velhas, ganhou clipe de Kondzilla, aquela que é a maior produtora audiovisual brasileira da periferia, cujo canal de YouTube tem média de 250 milhões de visualizações por mês e, não à toa, também em fevereiro, assumiu o posto de terceiro maior canal musical do YouTube no mundo, superando nomes de peso da indústria fonográfica como Taylor Swift e Kate Perry.

Considerando que, de acordo com a ANCINE, o filme brasileiro mais assistido nos cinemas em 2017, “Minha Mãe é uma Peça 2”, teve 5,2 milhões de espectadores e que o público total das salas, somados filmes estrangeiros e nacionais, foi de 181,2 milhões, a efetividade dos meios digitais como vitrine da sociedade revela a sua assombrosa dimensão não apenas em números, mas em potencial: a novidade das periferias poderem filmar (ou seja, construir) e difundir a própria identidade é avanço substancial no jogo político.

Aqueles que historicamente foram levados a resignar-se na posição de consumidores da cultura hegemônica podem, enfim, produzir. E produzir não é apenas um passatempo; é ter voz e imagem em uma sociedade que insiste em esconder as suas periferias.

Escrevo sob impacto da leitura de dois livros cujos diagnósticos da realidade brasileira não permitem um otimismo irrestrito: “Genocídio do Negro Brasileiro”, de Abdias Nascimento, obra que chega, neste 2018, ao seu quadragésimo aniversário teimando em não envelhecer, e “Na Minha Pele”, de Lázaro Ramos, artista que, ciente do entrelaçamento entre popularidade e responsabilidade, reforça o discurso de seu predecessor com a clareza de um comunicador popular.

Há quarenta anos, assim escrevia Abdias: “Devemos compreender democracia racial como significando a metáfora perfeita para designar o racismo estilo brasileiro: não tão óbvio como o racismo dos Estados Unidos e nem legalizado qual o apartheid da África do Sul, mas institucionalizado de forma eficaz nos níveis oficiais de governo, assim como difuso e profundamente penetrante no tecido social, psicológico, econômico, político e cultural da sociedade do país”.

Este racismo mascarado sob a fama de um Brasil da mestiçagem harmônica, do sincretismo religioso, da ousadia e alegria, da harmonia cultural, ainda ecoa no interior de nossa promoção enquanto nação, ainda que se deixe escapar nas miudezas dos discursos ou, como provoca Lázaro, “vocês nunca repararam na cor da pele de quem é “menor” e de quem é “criança” nos textos da imprensa, no vocabulário popular ou mesmo em pronunciamentos de autoridades?”.

Se nos textos escritos - na escolha de suas palavras e temas - os setores hegemônicos da sociedade insistem em manipular narrativas históricas, de modo que os conflitos nacionais mais profundos escondam-se sob a forma da bela aparência, como ignorar que os registros filmados do dia-a-dia não possam ser cooptados pela mesma lógica? Isto é, como o potencial emancipatório evidente na construção audiovisual das periferias pode se tornar mais uma ferramenta de dominação?

Às vésperas do carnaval de 2017, Ítalo Gonçalves da Conceição, 19, um jovem negro da periferia de Salvador, foi preso acusado de roubar celulares na praia. Posto em uma viatura – e percebendo que uma equipe de televisão gravava sua chegada à delegacia -, Ítalo não hesitou: virou-se para as câmeras e começou a cantar uma canção que havia composto meses antes. A música, “Me Libera Nega”, tornou-se rapidamente um sucesso estrondoso, Ítalo assumiu-se como MC Beijinho e até Caetano Veloso à época prestou-lhe bonita homenagem em um show, cantando o hit em uníssono com os milhares de espectadores.

Um ano depois, no entanto, reportagem do Correio da Bahia, publicada no último 15 de março, mostra Ítalo em depressão, vivendo com 500 reais mensais que a música ainda consegue render. Sua mãe declarou: “(Ítalo) ficou um ano triste. Comia e bebia dentro do quarto. Foi horrível, porque acabou a vida do meu filho”.

Nas redes, a imagem de um jovem cujo talento e circunstância lhe permitiram transpor barreiras sociais por meio da tecnologia virtual. Na vida real, este mesmo jovem retornando ao seu local de partida e ao forçado anonimato do qual brevemente vislumbrou sair.

É assim que, mais uma vez, a imagem da harmonia racial mascara e maquia a miséria - econômica, política e afetiva - do real. Quando se trata da rápida ascensão de um homem negro, pobre, da periferia, os holofotes voltam-se a ele, transmitindo a mensagem: "vejam só, é possível crescer neste país. As oportunidades estão dadas, cabe aos talentosos aproveitá-las".

A felicidade de MC Beijinho está gravada, popularizada para milhões. Seu declínio, porém, fica restrito aos poucos leitores de uma reportagem isolada. E assim o Brasil segue com sua imagem de país da felicidade e boa convivência.

Não quero com isso, obviamente, dar margem à leitura de que toda imagem deve ser representação de luta e denúncia ou de que a produção de conteúdo genuíno nas periferias sempre deve ser mediado pela tristeza ou sofrimento.

Os milhares de novos produtores de imagens têm o direito à expressão da felicidade, pois, afinal, como diz Lázaro Ramos, “como é bom ver histórias positivas e exemplos de vitórias, como é importante que os traços negroides e nossa origem africana sejam celebrados, sim, para aceitarmos quem nós somos”.

Em mundo que aspira à dignidade, é evidente que não cabe mais aos afrodescendentes não se verem representados por si mesmos nas telas, em seus múltiplos sentimentos; “o racismo”, Lázaro completa, “prega peças, nos faz muitas vezes desejar a identidade do outro”. No entanto, há de se tomar cuidado para que a alegria captada nas câmeras não se torne, mais uma vez e sempre, ferramenta do poder hegemônico para reafirmar o mito da democracia racial, da boa convivência e falsa pluralidade harmônica.

Junto à luta afirmativa, cabe, portanto, o eterno e insistente estado de vigília. A ideia de “um país de todos”, feito e consumido por todos, filmado e exibido por todos, deve ser, claro, o destino da totalidade dos esforços, mas sem perder de vista que o ponto de partida destes mesmos esforços deve ser justamente a constatação de que “país de todos” é por ora apenas um slogan. Estejamos atentos.

*Felipe Poroger é diretor do filme "Aqueles Anos em Dezembro" e responsável pelo Festival de Finos Filmes, mostra paulistana de curtas

Texto original: CARTA CAPITAL

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