quinta-feira, 10 de maio de 2018

Play it again, Sam: a falta de autonomia da política externa brasileira

por Grupo de Reflexão sobre Relações Internacionais — publicado 10/05/2018 00h10, última modificação 09/05/2018 13h22

Como em Casablanca, o Brasil, potencialmente mobilizador de uma nova de integração, sempre volta a chamar Sam para tocar a sua música no subcontinente

'A história do Brasil republicano continua a repetir nossa incapacidade de construção de um projeto efetivo de política externa autônoma'
Por Fernando Santomauro*

É inegável notar que, pelo menos desde o presidente Monroe, os Estados Unidos tenham uma clara noção de suas prioridades regionais para o continente americano. Seja pelo porrete (“Big Stick”) ou pela sedução (“Soft Power”), o grande irmão do Norte nunca deixou de dedicar energia, foco e fundos para uma presença constante em seus vizinhos ao Sul, conforme seus interesses.

Ao mesmo tempo, é importante destacar que muito mais do que resultado de um imperialismo unilateral, estes esforços norte-americanos se concretizam por não encontrarem a mesma disposição, clareza e meios do Brasil, principal país ao Sul da América na construção de possíveis propostas regionais autônomas, que pudessem ser baseadas concretamente em fortes instituições subcontinentais, em sérias, amplas negociações intraregionais e com projeto efetivo de integração a longo prazo.

Por um lado, a velha ladainha da maioria de governos brasileiros adesistas ao projeto associado norte-americano de desenvolvimento e de integração de “cima para baixo” como forma de inserção (mesmo que subalterna) no sistema internacional.

De outro, os poucos governos que se pretenderam independentes em seus discursos de política externa - como em momentos de Vargas, Jânio, Jango e Lula - alguns deles, como Lula, de certa forma tentaram repetir antigos padrões de prestígio e comércio externo, baseados em alguma cooperação técnica e política, e sobretudo na expansão das “campeãs nacionais”, mas nunca chegaram a construir de fato uma diferente integração regional que pudesse ser sustentada no tempo: que fosse horizontal, fundada em uma irmandade cidadã, baseada na cultura, educação e cooperação técnica regional, com mecanismos e fundos proporcionais a uma empreitada como essa.

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Iniciativas simbólicas, mas mais fragilizadas do que poderiam ser - como o Mercosul Social, a Unasul, o Conselho de Defesa Sul-Americano, o Focem, o Novo Banco de Desenvolvimento dos Brics - foram sinais do que uma política externa altiva brasileira poderia ter sido, se não deixasse de ser tão ativa, principalmente a partir do governo Dilma Rousseff e das crises política, social e econômica iniciadas em 2013.

A lista de intervenções norte-americanas no país vem desde o tempo do fim do Império Brasileiro, sempre tentando garantir a república nativa de acordo com os moldes americanos, o livre mercado para os produtos “Made in USA” e a proximidade política entre os dois países. Foi assim na Revolta da Armada, quando a presença de navios americanos na Baía de Guanabara garantiu a continuidade da jovem república brasileira.

Foi assim também com a presença de agentes e navios norte-americanos em nosso território, além do envio de munições e de um massivo trabalho de mobilização da opinião pública brasileira desde os anos 1950, que garantiram o golpe civil-militar de 1964. A lista das intervenções diretas dos Estados Unidos no resto do continente é extensa, como na queda de Allende no Chile, ou mais recentemente na tentativa de golpe contra Hugo Chávez, na Venezuela.

Desempenhando sempre seu papel, os Estados Unidos continuam tocando seu repertório no mundo e na região. Como bem descreve Moniz Bandeira, o “modus operandi” estadunidense continuou pelo menos até o governo do Presidente Obama, por meio de “guerras por procuração, terror, caos e catástrofes humanitárias ao redor do mundo”, com o uso da inteligência, da contra-inteligência e das mais bárbaras e sofisticadas ferramentas de destruição que o mundo já conheceu. Bandeira, ainda em suas últimas entrevistas, não tinha dúvida do papel norte-americano na derrubada de Dilma Rousseff e na parcial Operação Lava-Jato, por meio do “lawfare”.

Para entender o atual processo do Brasil e de outros países latino-americanos, imersos em crises graves, fundadas principalmente a partir de escândalos midiáticos nascidos de ações de cooperação internacionais judiciais sobre lavagem de dinheiro, mesmo sem ainda haver documentos e fontes oficiais que explicitem todo esse mecanismo, é possível compreender pelo menos que as investigadas grandes empresas brasileiras, mais competitivas internacionalmente, como Petrobras, JBS e Odebrecht, foram as principais derrotadas. Por outro lado, as suas grandes concorrentes no plano internacional, na maior parte as dominantes norte-americanas ou chinesas, foram as mais beneficiadas.

Só a constante ação norte-americana não pode explicar, no entanto, o atual momento em que nos encontramos. As sucessivas más escolhas e o baixo perfil internacional do país em Dilma, somadas ao abandono do apoio necessário ao discurso que o Brasil vinha sustentando desde Lula, seja na integração regional ou em suas iniciativas de novas alianças globais, levaram o Brasil a uma posição fragilizada internacionalmente a partir do fim da primeira década deste século.

É daquele período o “cable” recentemente divulgado pelo wikileaks, demonstrando o começo de uma aproximação judicial entre EUA, polícia federal, procuradores e juízes brasileiros, que em nome da “Guerra ao Terrorismo”, começaram a cooperar em diversas técnicas de investigação e em operações de lavagem de dinheiro internacional.

Um dos juízes citados pelo documento norte-americano, Sérgio Moro, era um participante mencionado da chamada “Operação Pontes” de cooperação judicial EUA-Brasil e outros países latino-americanos que começava e, segundo o documento, tinha forte interesse das justiças estaduais de Curitiba, São Paulo e Campo Grande.

As recentes descobertas divulgadas pelo Wikileaks desvendam, quase em tempo real, os meandros da política internacional, seus principais atores e interesses em jogo. Os documentos que divulgaram, por exemplo, a espionagem estadunidense da então Presidenta Dilma Rousseff, Ministros de Estado, peças-chave de seu governo e principalmente da Petrobras, anteciparam o entendimento sobre as bases econômicas e interesses estrangeiros que seriam beneficiados pelo posterior impeachment.

Os relatos vazados sobre a participação de Michel Temer como interlocutor de agentes do governo norte-americano em assuntos relacionados à política nacional pelo menos desde 2006, também demonstravam sua proximidade e o diálogo fluído que podem ter garantido, no mínimo, a simpatia externa pela sua manutenção no poder e na implementação das agendas de reformas e privatizações, na tentativa de entrega da Eletrobras e os Correios e na de setores da Petrobras e da Embraer, medidas que beneficiariam grandes empresas norte-americanas, como as grandes petroleiras americanas e a Boeing, por exemplo.

Os constantes e visíveis esforços norte-americanos de influenciar a política regional e nacional não podem ser considerados como os únicos causadores da desfragmentação política da América Latina e da derrocada dos governos que esboçaram uma estratégia subcontinental mais autônoma.

Os importantes interesses de influentes grupos econômicos, os políticos que os representavam no Congresso, somados à falta de energia e compromisso da maior potência sul-americana para efetivamente bancar uma estratégia cidadã, econômica e cultural negociada multilateralmente e de longo prazo para a integração regional, soam como um pedido para que o Tio Sam tome as rédeas de nossas “repúblicas” e “democracias”.

Assim como a personagem Ilsa do filme “Casablanca”, o Brasil, polo político-estratégico potencialmente mobilizador de uma nova realidade de integração autônoma sul-americana, infelizmente sempre volta a chamar Sam para tocar a sua música no subcontinente, seja por meio da subserviência de suas velhas elites alinhadas, ou pela falta do aprofundamento necessário quando teve oportunidades para isso. “Play it again, Sam”.

*Fernando Santomauro é membro do Grupo de Reflexão sobre Relações Internacionais/GR-RI e doutor em Relações Internacionais pelo Programa San Tiago Dantas (Unesp, Unicamp e PUC-SP).

Texto original: CARTA CAPITAL

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