sábado, 25 de março de 2017

Previdência: uma reforma draconiana justificada por mitos e palpites catastrofistas sobre o futuro

Será preciso entrar no mercado de trabalho com 16 anos e permanecer no emprego formal por 49 anos ininterruptos.

Eduardo Fagnani

A Reforma da Previdência unifica as regras para todos os segmentos, acabando com diferenciações previstas pela Carta de 1988, dadas as assimetrias entre gêneros e entre campo e cidade. Homens e mulheres, rurais e urbanos, trabalhadores privados e servidores públicos terão de comprovar idade mínima de 65 anos e 49 anos de contribuição para terem acesso à aposentadoria com valor integral. Nesse caso, será preciso entrar no mercado de trabalho com 16 anos e permanecer no emprego formal por 49 anos ininterruptos. Se estudar e começar a trabalhar com 24 anos (média da OCDE), terá aposentadoria integral aos 73 anos.

Como amplamente demonstrado no documento “Previdência: reformar para excluir?”, trata-se de aberração confrontada com as condições do mercado de trabalho e com a realidade socioeconômica e demográfica trabalhista do país. A reforma é injusta por impor, num país desigual, regras ainda mais rígidas que as praticadas em nações igualitárias, onde a idade de 65 anos e tempo de contribuição de 35 anos "não é o mínimo, mas a referência". É um escárnio inspirar a reforma brasileira em modelos de países igualitários, porque há um abismo a separar o contexto histórico e as condições de vida daquelas nações e o contexto histórico e condições de vida vigentes no Brasil, sociedade com longo passado escravagista, de industrialização tardia e com incipiente experiência democrática.

Essas diferentes condições traduzem-se em profundas desigualdades e heterogeneidades socioeconômicas, demográficas e regionais. O documento deixa esse ponto claro ao apresentar diversos indicadores comparativos (Brasil e países desenvolvidos). A conclusão é facilmente compreendida pela seguinte alusão futebolística: em todos esses indicadores, os países desenvolvidos estão na “Série A” e o Brasil na zona de rebaixamento da “Série D”. A gravidade desse quadro se intensifica se olharmos essas desigualdades no contexto da heterogeneidade regional brasileira. Menos de 1% dos mais de 5500 municípios brasileiros tem Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) semelhante aos países europeus. Mais de 65% deles possui IDH "Médio" (semelhante ao de Botsuana), IDH "Baixo" (padrão verificado em Zâmbia) e IDH "Muito Baixo" (algo próximo da Etiópia). No Município de São Paulo a expectativa de vida média é de 76 anos, mas em Cidade Tiradentes não ultrapassa 54 anos. Esse é um retrato do Brasil.

Ao unificar as regras para todos os segmentos, o governo ilegítimo desconsidera as desigualdades de gênero e as heterogeneidades da zona rural brasileira. Como se sabe, mais de 70% da pobreza extrema está situada na zona rural do Nordeste. Não é justo que o trabalhador rural do Nordeste do Brasil seja submetido a regras de aposentadoria mais exigentes que as aplicadas ao trabalhador urbano da Escandinávia. Uma das maiores crueldades é a elevação da carência mínima, de 65 para 70 anos, para a concessão do benefício assistencial (BPC) a idosos socialmente mais vulneráveis (renda familiar per capita de ¼ do salário mínimo) e portadores de deficiências, que hoje beneficia mais 16 milhões de pessoas. Esse indivíduo, expulso do sistema, se chegar aos 70 anos, será condenado à pobreza extrema, até que morra, pois receberá pensão inferior de valor arbitrado pelo governo.

Em síntese, o ímpeto destruidor da reforma que se estuda no Brasil extingue o direito a proteção à velhice garantido no artigo 25 da clássica Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, pois a maior parte dos brasileiros não gozará os benefícios do direito humano a um padrão de vida que assegure atenção à saúde e bem-estar a cada um e respectiva família, inclusive "o direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência fora de seu controle".

Com a reforma, os trabalhadores ativos sem proteção (37% do total) jamais serão integrados; e a eles, se juntará uma massa de novos trabalhadores expulsos, pelo aumento da informalidade (vide Reforma Trabalhista), por não terem capacidade contributiva, por não terem saúde para continuar no trabalho, e por saberem que é inútil contribuir para fazer jus a benefício inatingível. Daí advém uma grave consequência: a quebra financeira da previdência social, pela retração das receitas provenientes das camadas mais pobres, intensificada pela fuga das classes mais ricas para o setor privado. “Reformar hoje, para quebrar amanhã” seria o slogan mais apropriado para a reforma de Temer.

Premissas questionáveis

É fato que a população está envelhecendo. Mas isso não implica aceitar o fatalismo demográfico e a ideia de que "não há alternativas". Democracias desenvolvidas enfrentaram e superaram essa questão no século passado e gastam mais que o dobro em previdência, como proporção do PIB, na comparação com o Brasil.

Essa visão catastrofista apoia-se no aumento da "razão de dependência de idosos" (menor proporção de trabalhadores contribuintes, para maior número de aposentados). Esse indicador parte de premissa falsa: o financiamento da previdência não depende unicamente da contribuição do trabalhador ativo. Os constituintes de 1988 se inspiram no clássico modelo tripartite de financiamento da Seguridade Social amplamente difundido na Europa a partir de 1945 onde, atualmente, quase 50% dos recursos provem da “contribuição do governo” (impostos gerais).

Outro equívoco é que esse indicador expressa relações produtivas características da Segunda Revolução Industrial centrada na superada “base salarial fordista”. Com a Quarta Revolução Industrial, nesse século 21, a estrutura de impostos deve deixar de incidir sobre a base salarial (que só diminui) e passem a incidir sobre a renda e riqueza financeira (que só aumenta). Também é preciso considerar que o problema não está na demografia, mas no fato de o Brasil não ter ainda modelo econômico compatível com as necessidades do seu próprio desenvolvimento.

O "déficit" da previdência é outra "bomba relógio" de ficção. Tem-se aí uma típica "pedalada" contra a Constituição, pois o Brasil, desde 1988, segue o modelo tripartite clássico de (Empregador, Trabalhador e Governo) adotado em diversos países da OCDE para financiar a Seguridade Social. E, para que o governo passasse a ter recursos para cumprir sua parte no financiamento da previdência, os constituintes de 1988 criaram três novas contribuições sociais. O famosíssimo suposto "déficit" vem de a área econômica de sucessivos governos não contabilizar a "Contribuição do Governo" como receita da previdência. Desde 1989, a área econômica captura esses novos recursos criados pela Constituição de 88. E o Ministério da Previdência não considera a previdência como parte da seguridade; assim fazendo desobedece o que determinam os artigos 194 e 195 da Constituição. Em suma, o “déficit” é fruto do recorrente desprezo pela Constituição da República.

Palpites catastrofistas sobre o futuro. 

“Se nada for feito” o "déficit" da previdência “será de 17% do PIB” diz o Ministério da Fazenda. Economistas ligados aos bancos dizem que “atingirá 23% do PIB”. É uma vergonha que previsões deste tipo sejam feitas sem amparo científico. É um escárnio que a extinção do direito a proteção à velhice no Brasil seja justificada pelo terrorismo econômico com base em “modelos” de projeção atuarial ultrapassados, sucateados e, intencionalmente, enviesados.

Até o dia 14 de março último a sociedade não conhecia o tal “modelo” que endossa o cataclismo anunciado. Nesse dia, um grupo de pesquisadores, denunciando o fato, lançou o documento “A Previdência Social em 2060: as inconsistências do modelo de projeção atuarial do Governo brasileiro”. E, pasmem, no dia seguinte, na audiência da Comissão que trata da PEC 287 no Congresso Nacional, um representante do Ministério da Fazenda disse que o governo agora tem um novo “modelo”. Entretanto, em sua exposição, apresentou planilhas “elaboradas na noite anterior”.

É digno de nota que em resposta aos Requerimentos de Dados sobre Benefícios solicitados pelo Deputado Ivan Valente (PSOL-SP) e pelo Senador Lindberg Farias (PT-RJ), o Ministro da Fazenda emitiu Nota (GGEDEA n.05 de 13 de março de 2017) explicitando as limitações para o atendimento das demandas parlamentares, por tratar de “uma extração onerosa, tanto em termos financeiros como em tempo necessário para a sua execução, cujo valor não está previsto no orçamento atual da Secretaria de Previdência com a Empresa de Tecnologia e Informações da Previdência (Dataprev)” (grifos meus). 

Outro problema aventado pelo Ministério da Fazenda é que após extinção do MPAS, o INSS “passou a ser uma autarquia subordinada ao Ministério do Desenvolvimento Social e Agrário (MDSA)”. Em função desses fatos, o Ministro sugere que os requerimentos parlamentares sejam encaminhados para a Dataprev e MDSA!

Há, de fato, um modelo? Ou se trata de mais e mais palpites bem informados, meras conjecturas sem amparo técnico e científico? Quais parâmetros suportam tais projeções tendencialmente ruinosas? Quais variáveis são utilizadas? Quais premissas embasam os prognósticos para 2060? Se há modelo, ele deve ser objeto de amplo debate. Dada a importância crucial dessas projeções para as decisões que serão tomadas no presente, a sociedade e o Parlamento tem o dever de exigir que o governo abra a "caixa preta" e apresente para a sociedade os critérios utilizados para sustentar seu discurso.

Em suma, estamos na iminência de uma reforma radicalmente excludente da Previdência que é justificada por números supostamente “irrefutáveis”, mas desconhecidos dos brasileiros que serão as vítimas da reforma-catástrofe.

Eduardo Fagnani é professor do Instituto de Economia da Unicamp, pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e do Trabalho (CESIT-IE-UNICAMP) e coordenador da rede Plataforma Política Social (www.plataformapoliticasocial.com). 

Texto original:
CARTA MAIOR

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