terça-feira, 28 de abril de 2015

Há riquezas que são de todos: os bens comuns

A Califórnia há décadas discute a questão da água, enquanto a ia esgotando, gerando o drama atual. As tecnologias avançaram, mas a forma de governo, não.

Ladislau Dowbor

Todos sabemos, bem ou mal, administrar os nosso bens privados, a nossa casa, eventualmente a nossa empresa, além das nossas poupanças. Sabemos administrar também, de maneira razoável, os bens claramente de responsabilidade do Estado, ou públicos no sentido estrito, como as ruas: os parques, os hospitais ou escolas públicas. Em ambos casos ocorrem deslizes mais ou menos graves, mas no conjunto são esferas onde sabemos quem é responsável.

E os bens comuns, como ficam? Estas reservas finitas de riquezas planetárias que não são bem de responsabilidade de um governo determinado nem de uma pessoa física ou jurídica, quem as governa? Trata-se aqui evidentemente das calotas polares, mas também dos oceanos e dos mares, dos nossos rios, dos lençóis freáticos de águas subterrâneas, do ar que respiramos, do conhecimento produzido pela humanidade, dos animais que ainda povoam o planeta, da beleza das paisagens e de outros bens essenciais para as nossas vidas, e que estamos maltratando ou simplesmente destruindo. Quem cuida deles? Como reverter a sua sistemática destruição ou esgotamento? Com mais de 7 bilhões de habitantes no planeta, e 80 milhões a mais a cada ano, já ultrapassamos os limites de esgotamento ou de contaminação dos recursos naturais.

O Nobel de economia de 2009 conferido a Elinor Ostrom resgata um pouco este tremendo atraso nas chamadas ciências econômicas, que é a preocupação com a gestão dos nossos bens comuns, além de resgatar um pouco de outra dívida óbvia: é a primeira vez que este prêmio, que aliás não vem do fundo Nobel e sim do Banco da Suécia, é concedido a uma mulher. Ostrom está contribuindo muito para a construção de uma outra visão. O seu livro Governing the Commons (governando os bens comuns) retomou uma discussão antiga, colocada na mesa por Garrett Hardin, ainda nos anos 1960, em artigo que se tornou um clássico, The Tragedy of the Commons.

Não se trata, no caso de Ostrom, de mais uma denúncia da tragédia ambiental. Para isto temos clássicos como O nosso futuro comum coordenado por Gro Brundtland e excelentes sínteses recentes como o Plano B 4.0 de Lester Brown, além de inúmeras pesquisas sobre todas as áreas ameaçadas. A característica dos trabalhos da autora é o fato de se debruçar de forma muito concreta sobre a economia política dos bens comuns, ou seja, o problema da sua governança. Por força dos limites da natureza, somos condenados a aprender a nos governar de maneira responsável.

Tomemos como exemplo a sua análise da água na Califórnia. É um estado rico em todos os sentidos, e em particular em ciência. No entanto, aproveitando as tecnologias que permitem irrigação e bombeamento de águas subterrâneas em grande profundidade e em grandes quantidades, geraram um drama. As tecnologias avançaram, a governança muito menos. Há muitas décadas que os californianos já discutiam os limites da água disponível, enquanto a iam esgotando, gerando o drama atual.

Ostrom mostra que os grupos privados simplesmente entraram na corrida de quem conseguia extrair mais água do que os outros – na tradicional visão da sobrevivência do mais forte – até que, a água passando a faltar para todos, tiveram de elaborar e aplicar uma outra visão de economia política: a negociação de pactos para a gestão coletiva de um recurso escasso e apenas parcialmente renovável. Este tipo de mecanismo participativo de negociação vai além tanto dos parâmetros da economia de mercado como da simples codificação impositiva através de leis e controle estatal. A sociedade precisa aprender a colaborar no uso responsável dos recursos finitos ou escassos.

O subtítulo do livro resume bem a problemática: a evolução das instituições para a ação coletiva. A Califórnia está construindo “acordos negociados sobre o direito às águas”. Fazem parte do que tem sido chamado de “novos arranjos institucionais”. No centro destes arranjos estão os sistemas que permitem uma divisão equilibrada de acesso aos recursos – o que pode envolver recursos pesqueiros, pastagens, madeira e inúmeros outros – através de sistemas participativos numa sociedade mais organizada.

A privatização obviamente não resolve: “Cada usuário tem uma estratégia dominante de bombear tanta água quanto lhe será lucrativo, e de ignorar as consequências de longo prazo para os níveis e qualidade da água.”(136) O resultado é uma economia com PIB muito elevado e excelentes centros de pesquisa, e um desastre sistêmico.

Neste ano de 2015, em que negociamos acordos de longo prazo cruciais para a sobrevivência do planeta – as Metas do Desenvolvimento Sustentável em Nova Iorque, os acordos sobre o clima em Paris e o desenho do financiamento do desenvolvimento em Addis Abeba – reler este trabalho de Elinor Ostrom, que traz dezenas de exemplos de formas inovadoras de gestão dos recursos escassos que constituem bens comuns, realmente vale a pena. Lamentavelmente, este pequeno clássico não foi publicado ainda em português, mas já existe em espanhol.

Elinor Ostrom – Governing the commons: the evolution of institutions for collective action – Cambridge University Press, Cambridge, 1990 (Prêmio Nobel 2009). Em espanhol, El gobierno de los bienes comunes.

Texto original: CARTA MAIOR

Nenhum comentário:

Postar um comentário