quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

A grande empulhação dos colunistas econômicos

Grande parte dos colunistas de economia da imprensa comercial brasileira, autodenominada grande imprensa, comete uma fraude contra os cidadãos.

Marco Piva (*)

Grande parte dos colunistas de economia da imprensa comercial brasileira, autodenominada “grande imprensa”, comete uma fraude contra os cidadãos que acompanham as notícias no dia a dia. Eles têm uma verdadeira obsessão quando tratam de assuntos da sua área: a obsessão de acreditar que falam ou escrevem sem ideologia nenhuma, que seus comentários são isentos, práticos e objetivos, e que só mesmo a cegueira política não é capaz de enxergá-los como grandes pensadores críticos do país. Ora, ter uma visão ideológica e não assumi-la é a pior forma de cinismo e de empulhação. Essa gente não fez nem TCC no ensino médio para saber que qualquer coisa que se diga, se fala desde um lugar, desde uma teoria de interpretação sobre a realidade que se vê. E acreditar nos pilares do liberalismo sem freio, na aposta que a mão invisível do mercado pode tudo, forma um conceito tão atrasado quanto aquela regra do futebol que permitia ao goleiro segurar a bola com a mão por quanto tempo quisesse.

Pois bem. Um dos esportes prediletos desses colunistas de uma só forma de ver a economia é criticar os governos ditos bolivarianos como a Venezuela, o Equador, a Bolívia e a Argentina, não faltando tremendos esforços para incluir o Brasil na lista. A tese vale para todos: são governos gastões, populistas, anti-iniciativa privada, inimigos dos Estados Unidos e por aí vai. Dizem os guardiões do pensamento do mercado que a situação nesses países vai de mal a pior por obra e culpa dos governantes de plantão, casualmente todos eles de esquerda.

Não é que as previsões para os demais países latino-americanos também não são nada animadoras para 2015? Vamos pegar o exemplo de nações governadas pela direita para que a análise não seja entorpecida. O México terá um de seus piores anos. Indústrias norte-americanas instaladas em território mexicano estão demitindo e fechando suas portas. As chamadas “fábricas maquiladoras”, eixo central da integração do Nafta, estão indo se instalar em outras freguesias. O petróleo, principal receita do país, está com a produção em baixa e preços achatados no mercado internacional. Como entrou de sócio menor no acordo comercial com Estados Unidos e Canadá, os mexicanos correm o risco de voltar a níveis produtivos anteriores a 1980. O PIB deste ano está previsto para 1,0%. A pobreza e a violência só crescem.

A Colômbia, outra menina dos olhos dos colunistas econômicos brasileiros, teve forte queda de produção e mal ultrapassou o 1% do PIB em 2014. As previsões para esse ano são ainda mais sombrias. Aberto desde sempre ao capital estrangeiro especulativo, o país começa a assistir a saída desses capitais numa escala sem precedente. Pesa ainda a desvantagem de não ter muito para onde correr, já que a produção agrícola do país depende de commodities, cujos preços estão em baixa no mercado internacional, sem falar do problema da violência política, ainda sem solução definitiva.

O Peru, depois de três anos seguidos de crescimento, viu uma marcha à ré em 2014. Sua principal riqueza, as jazidas de minério, perdeu espaço para novos centros de produção na África e Ásia. Sem uma indústria forte, pouco terá a oferecer para garantir emprego e renda aos seus cidadãos.

Vamos colocar o Chile no rol dos países mais abertos economicamente, embora tenha um governo de inspiração esquerdista moderada. O cobre, de longe a grande cartada do país, está com preços em queda. Os investimentos externos estão caindo para os piores níveis da história e, o que é pior, iniciam um movimento de fuga, o que levou a presidente Michelle Bachelet a decretar apressadamente uma nova lei de “inversiones extranjeras”, mais liberal e sem grandes contrapartidas como a anterior.

Nesse cenário, o Banco Mundial destaca que a América Latina cresceu 1,0% em 2014, a média mais baixa dos últimos 12 anos. A projeção de crescimento do PIB é de 2,4% para este ano, um verdadeiro risco para a continuidade dos programas sociais que diminuíram em 24% a pobreza no continente. Nenhum país latino-americano ou caribenho crescerá vigorosamente, com a única exceção da Bolívia, que ainda colhe os frutos da nacionalização do setor de gás e energia. Então, onde está escrito que os únicos países que estão em difícil situação econômica são aqueles cujos governos tem ideias de esquerda? Em qual manual ficou provado que a melhor maneira de levar a economia de uma nação é abrindo todos os flancos para o investimento estrangeiro e para a total privatização dos setores estratégicos? Quem disse que desenvolvimento não combina com justiça social?

Sem dúvida, falta muito para que famosos colunistas econômicos tenham a humildade de reconhecer que, sim, falam em nome de uma ideologia a qual devotam crença inabalável e que prestam um desserviço aos consumidores de notícia quando emitem opiniões baseados em só um lado da moeda. A América Latina vive uma crise econômica que é resultado da queda brutal das commodities de matérias primas, do rearranjo do poder econômico mundial baseado na financeirização dos ativos, da precarização de seu parque industrial, da histórica falta de investimento em inovação e tecnologia e do profundo ódio que os donos locais do dinheiro nutrem contra qualquer coisa que sinalize uma pequena mudança em seu status quo.

Por isso, debater a regulação econômica da mídia é mais do que necessário; é urgente, é “pra ontem”. Somente assim poderemos almejar uma sociedade com mais pluralismo e mais democracia, com cidadãos que poderão olhar criticamente uma notícia sob variados pontos de vista e não apenas a partir da “verdade única” dos colunistas, desses endeusadores do oráculo do mercado.

(*) Marco Piva é jornalista.

segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

Noam Chomsky: estamos à beira da total auto-destruição?

Existem mais processos de longo prazo apontando na direção, talvez não da destruição total, mas ao menos da destruição da capacidade de uma vida decente.

Noam Chomsky, Alternet

O que o futuro trará? Uma postura razoável seria tentar olhar para a espécie humana de fora. Então imagine que você é um extraterrestre observador que está tentando desvendar o que acontece aqui ou, imagine que és um historiador daqui a 100 anos - assumindo que existam historiadores em 100 anos, o que não é óbvio - e você está olhando para o que acontece. Você veria algo impressionante.

Pela primeira vez na história da espécie humana, desenvolvemos claramente a capacidade de nos destruirmos. Isso é verdade desde 1945. Agora está finalmente sendo reconhecido que existem mais processos de longo-prazo como a destruição ambiental liderando na mesma direção, talvez não à destruição total, mas ao menos à destruição da capacidade de uma existência decente.

quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

Golpe final na soberania do País


Por Adriano Benayon* – 20.01.2015

1. Não é hipérbole dizer que o Brasil – consciente disto, ou não – vive momento decisivo de sua História. Se não quiser sucumbir, em definitivo, à condição de subdesenvolvido e (mal) colonizado, o povo brasileiro terá de desarmar a trama, o golpe em que está sendo envolvido.

2. Essa trama – que visa a aplicar o golpe de misericórdia em qualquer veleidade de autonomia nacional, no campo industrial, no tecnológico e no militar – é perpetrada, como foram as anteriores intervenções, armadas ou não, pelas oligarquias financeiras transnacionais e instrumentalizada por seus representantes locais e pelo oligopólio mediático, como sempre utilizando hipocritamente o pretexto de combater a corrupção.

3. Que isso significa? Pôr o País à mercê das imposições imperiais sem que os brasileiros tenham qualquer capacidade de sequer atenuá-las.

4. Implica subordinação e impotência ainda maiores que as que levaram o País, de 1955 ao final dos anos 70, a endividar-se, importando projetos de infra-estrutura, em pacotes fechados, e permitindo o crescimento da dívida externa, através dos déficits de comércio exterior decorrentes da desnacionalização da economia, e em função das taxas de juros arbitrariamente elevadas e das não menos extorsivas taxas e comissões bancárias para reestruturar essa dívida.

5. Ora, a cada patamar inferior a que o Brasil é arrastado, o império o constrange a afundar para degraus ainda mais baixos, tal como aconteceu nas décadas perdidas do final do Século XX.

6. Na dos anos 80 ocorreu a crise da dívida externa, após a qual o sistema financeiro mundial fez o Brasil ajoelhar-se diante de condições ainda mais draconianas dos bancos “credores”.

7. Na dos anos 90, mediante eleições diretas fraudadas em favor de ganhadores a serviço da oligarquia estrangeira, perpetraram-se as privatizações, nas quais se entregaram e desnacionalizaram, em troca de títulos podres de desprezível valor, estatais dotadas de patrimônios materiais de trilhões dólares e de patrimônios tecnológicos de valor incalculável.

8. A Operação Lava-jato está sendo manipulada com o objetivo de destruir simultaneamente a Petrobrás – último reduto de estatal produtiva com formidável acervo tecnológico – bem como as grandes empreiteiras, último reduto do setor privado, de capital nacional, capaz de competir mundialmente.

9. Quando do tsunami desnacionalizante dos 90, a Petrobrás foi das raras estatais não formalmente privatizadas. Mas não escapou ilesa: foi atingida pela famigerada Lei 9.478, de 1997, que a submeteu à ANP, infiltrada por “executivos” e “técnicos” ligados à oligarquia financeira e às petroleiras angloamericanas.

10. Essa Lei abriu a porta para a entrada de empresas estrangeiras na exploração de petróleo no Brasil, com direito a apropriar-se do óleo e exportá-lo, e propiciou a alienação da maior parte das ações preferenciais da Petrobrás, a preço ínfimo, na Bolsa de Nova York, para especuladores daquela oligarquia, como o notório George Soros.

11. Outros exemplos do trabalho dos tucanos de FHC agindo como cupins devoradores – no caso, a Petrobrás servindo de madeira – foram: extinguir unidades estratégicas, como o Departamento de Exploração (DEPEX); desestruturar a administração; e liquidar subsidiárias, como a INTERBRÁS e numerosas empresas da área petroquímica.

12. Como assinalam os engenheiros Araújo Bento e Paulo Moreno, com longa experiência na Petrobrás, a extinção do DEPEX fez que a empresa deixasse de investir na construção de sondas e passasse a alugá-las de empresas norte-americanas, como a Halliburton, a preços de 300 mil a 500 mil dólares diários por unidade.

13. Os próprios dados “secretos” da Petrobrás, inclusive os referentes às fabulosas descobertas de seus técnicos na plataforma continental e no pré-sal são administrados pela Halliburton. Em suma, a Petrobrás é uma empresa ocupada por interesses imperiais estrangeiros, do mesmo modo que o Brasil como um todo.

14. Além disso, a Petrobrás teve de endividar-se pesadamente para poder participar do excessivo número de leilões para explorar petróleo, determinados pela ANP, abertos a empresas estrangeiras.

15. Para obter apoio no Congresso, os governos têm usado, entre outras, as nomeações para diretorias da Petrobrás. Essa política corrupta e privilegiadora de incompetentes, já antiga, é bem-vinda para o império, e é adotada para “justificar” as privatizações: vai-se minando deliberadamente a empresa, e depois se atribui suas falhas à administração estatal.

16. Tal como agora, assim foi nos anos 80 e 90, com a grande mídia, incessantemente batendo nessa tecla, e fazendo grande parte da opinião pública acreditar nessa mentira.

17. Mas as notáveis realizações da Petrobrás são obras de técnicos de carreira, admitidos por concurso – funcionários públicos, como foram os da Alemanha, das épocas em que esse e outros países se desenvolveram. Entretanto, a mídia servil ao império demoniza tudo que é estatal e oculta a corrupção oriunda de empresas estrangeira, as quais, de resto, podem pagar as propinas diretamente no exterior.

18. Para tirar do mercado as empreiteiras brasileiras, as forças ocultas – presentes nos poderes públicos do Brasil – resolveram aplicar, contra essas empresas, a recente Lei nº 12.846, de 01.08.2013, que estabelece “a responsabilização objetiva administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a administração pública, nacional ou estrangeira (sic).”

19. Seu art. 2o reza: As pessoas jurídicas serão responsabilizadas objetivamente, nos âmbitos administrativo e civil, pelos atos lesivos previstos nesta Lei praticados em seu interesse ou benefício, exclusivo ou não.”

20. Como as coisas fluem rapidamente, quando se trata de favorecer as empresas transnacionais, a Petrobrás já cuidou de convidar empresas estrangeiras para as novas licitações, em vez das empreiteiras nacionais.

21. A grande mídia, tradicionalmente antibrasileira, noticia, animada, a possibilidade de se facilitar, em futuro próximo, a abertura a grupos estrangeiros do mercado de engenharia e construção civil, mais uma consequência da decisão, contrária aos interesses do País, de considerar inidôneas as empreiteiras envolvidas na operação Lava Jato.

22. Recentemente, nos EUA, foi infligida multa recorde, por corrupção, a um grupo francês, a qual supera de longe os US$ 400 milhões impostos à alemã Siemens. Já das norte-americanas, por maiores que sejam seus delitos, são cobradas multas lenientes, e não está em questão alijá-las das compras de Estado.

23. Já no Brasil – país ocupado e dominado, mesmo sem tropas nem bases estrangeiras – somente são punidas empresas de capital nacional. Fica patente o contraste entre um dos centros do império e um país relegado à condição de colônia.

24. Abalar a Petrobrás e inviabilizar as empreiteiras nacionais implica acelerar o desemprego de engenheiros e técnicos brasileiros em atividades tecnológicas. As empreiteiras são importantes não só na engenharia civil, onde se têm mostrado competitivas em obras importantes no exterior, mas também por formar quadros e gerar de empregos de qualidade nos serviços e na indústria, inclusive a eletrônica e suas aplicações na defesa nacional.

25. Elas estão presentes em: agroindústria; serviços de telefonia e comunicações; geração e distribuição de energia; petróleo; indústria química e petroquímica; construção naval. E – muito importante – estão formando a nascente Base Industrial da Defesa.

26. A desnacionalização da indústria já era muito grande no início dos anos 70 e, além disso, foi acelerada desde os anos 90, acarretando a desindustrialização. Paralelamente, avança, de forma avassaladora, a desnacionalização das empresas de serviços.

27. Este é o processo que culmina com o ataque mortal à Petrobrás e às empreiteiras nacionais, e está recebendo mais um impulso através da política fiscal – que vai cortar em 30% os investimentos públicos – e da política monetária que está elevando ainda mais os juros.

28. Isso implica favorecer ainda mais as transnacionais e eliminar maior número de empresas nacionais, sobre tudo pequenas e médias, provedoras mais de 80% dos empregos no País. De fato, só as transnacionais têm acesso aos recursos financeiros baratos do exterior e só elas têm dimensão para suportar os cortes nas compras governamentais.

29. Como lembra o Prof. David Kupfer, a Petrobrás e seus fornecedores respondem por 20% do total dos investimentos produtivos realizados no Brasil. Só a Odebrecht e Camargo Corrêa foram responsáveis por mais de 230 mil empregos, em 2013.

30. A área econômica do Executivo parece não ver problema em reduzir o assustador déficit de transações correntes (mais de US$ 90 bilhões de dólares em 2013), causando uma depressão econômica, cujo efeito, além de inviabilizar definitivamente o desenvolvimento do País, implica deteriorar a qualidade de vida da “classe média” e tornar ainda mais insuportáveis as condições de vida de mais da metade da população, criando condições para a convulsão social.

31. Por tudo isso, há necessidade de grande campanha para virar o jogo, com a participação de indivíduos, capazes de mobilizar expressivo número de compatriotas, e de entidades dispostas a agir coletivamente.

* – Adriano Benayon é doutor em economia, pela Universidade de Hamburgo, e autor do livro Globalização versus Desenvolvimento.

Texto original: Blog do Adriano Benayon

segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

Obrigado, Cecília, que brevemente mostrou ao público a verdade

publicado em 16 de janeiro de 2015 às 18:21


por Luiz Carlos Azenha

Trabalhar ao vivo, na televisão, é sempre muito complicado. Os críticos de sofá não têm a mínima ideia do que o repórter já enfrentou antes de aparecer na telinha para dar as informações mais recentes.

Para complicar, quem está do lado de cá não imagina o que está sendo dito naquele fone no ouvido do repórter. “Acelera”, “corta”, “acabou”, “fala mais um pouco” — eu mesmo já ouvi de tudo enquanto tentava desenvolver um raciocínio ao vivo, com limite de tempo e “segurando” toda a emissora.

A experiência sempre ajuda. Tive a sorte de fazer 100 transmissões ao vivo de automobilismo, nos boxes, o que me deu certa capacidade de improvisação. Quando Fernandinho Beira-Mar foi preso na Colômbia, usando o celular fiz uma entrevista ao vivo com o promotor do caso, traduzindo simultaneamente, direto das escadarias da Fiscalia, em Bogotá.

Mas nunca cheguei perto de gente como o Arnaldo Duran, que veio da escola do rádio. Se você colocar o Duran para falar ao vivo sobre qualquer assunto, em qualquer lugar do planeta, ele toma conta da situação de maneira formidável. É capaz de apurar uma informação logo ali na sua frente, sem perder o fio da meada.

Duran na verdade integra um grupo de veteranos que resiste em todas as emissoras, Globo inclusive. Antes de ser o repórter que aparece na TV, o “famoso”, Duran expõe sua humanidade no vídeo, sem nunca se imaginar celebridade.

No campo das transmissões ao vivo, a Globo é refém de seu próprio formato. É tudo tão certinho, tão quadrado, que quando alguém destoa chama a atenção.

No meu tempo, nem mesmo as entradas ao vivo eram improvisadas. O texto era escrito de antemão e pré-aprovado. Se alguém imaginava que aquilo estava sendo dito “no calor dos acontecimentos”, estava enganado.

Hoje, talvez mais que nunca, a Globo é um império editorialmente verticalizado. Isso exige repórteres bem adestrados ou amarrados.

Assim, a emissora será sempre pega de surpresa quando seus profissionais forem forçados a improvisar, por conta de acontecimentos ao vivo, em situações que fujam ao controle dos chefes.

A repórter Cecília Malan foi criticada nas redes sociais por supostamente ter se assustado com tiros em Paris. Normal.

O que me surpreendeu é que, provavelmente sem querer, ela entregou um dos segredos dos correspondentes internacionais de hoje.

Foi quando disse que não tinha condições de contar as novidades por falta de internet.

Registro, antes de avançar, que minha carreira de correspondente internacional começou antes da era Google. Na Manchete, em Nova York, a gente furava as mensagens em fita antes de enviá-las por telex para a editora internacional Teresa Barros, no Rio de Janeiro. Nossas transmissões eram, de fato, via satélite. Dez minutos Nova York-Rio custavam 1.500 dólares.

Quando o correspondente viajava, às vezes contava com o apoio de uma agência internacional, como a Reuters. Mas, na maioria das vezes, tinha mesmo de dar duro: fazer entrevistas, apurar fatos, checar informações com as fontes originais.

Eu sempre preferi dar um tom pessoal às minhas reportagens para escapar da interferência de superiores hierárquicos que estavam muito mais distantes — e menos informados — do que eu sobre os acontecimentos.

Dei sorte. Em Moscou, em 1988, alijado por sorteio de uma entrevista coletiva que encerrava a cúpula Gorbatchev-Reagan, trombei por acaso com o líder soviético dentro do Kremlin. Saiu uma entrevista exclusiva, quando o objetivo original era apenas mostrar as lindíssimas igrejas então convertidas a museus no centro de poder da URSS.

Infelizmente para os correspondentes internacionais, esse tempo acabou.

Hoje eles se tornaram reféns de seus editores no Brasil.

Enquanto estes acompanham dezenas de fontes de informação em tempo real, os repórteres, quando muito, têm uma visão local do evento.

Em Paris, a repórter da Globo reclamava acesso à internet com razão: queria saber o que estava acontecendo longe de seu posto de observação.

É isso o que as emissoras esperam dos correspondentes: que eles ajudem a mascarar o fato de que a maior parte do que transmitem é produzido por terceiros.

São dados e imagens de segunda mão vendidos como de primeira.

Foi-se o tempo de correspondentes como o Reali Júnior, que morou tanto tempo em Paris que era reconhecido inclusive por autoridades locais e tinha fontes, muitas fontes, francesas.

Ao longo dos últimos anos os salários despencaram e ser promovido a correspondente passou a ser, acima de tudo, uma questão de status.

Boa parte do trabalho é feito com “pacotes” de imagens e informações comprados de agências internacionais.

Nos grandes eventos, com transmissões ao vivo, a presença física do correspondente não significa necessariamente que esta equação se altere.

Para as empresas, o correspondente de autonomia limitada, além de mais barato, é mais fácil de controlar editorialmente.

Os veteranos foram sacrificados no altar da redução de custos.

Jovens repórteres aceitam com mais facilidade ler o que outros escrevem. Uma boa presença no vídeo é o que mais conta.

O público, sem acesso aos bastidores, fica fascinado ao se ver representado no centro dos acontecimentos.

Muitas vezes é isso mesmo: uma grande representação.

Neste sentido, o “pecado” de Cecília Malan deveria servir de crédito: ainda que inadvertidamente e por um breve momento, ela abriu a cortina da ilusão.

Leia também:
Altamiro Borges: Papa Francisco desperta a ira dos direitistas

Texto original: VI O MUNDO

quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

A opção do país pelo agronegócio faz o brasileiro consumir 5,2 litros de agrotóxicos por ano

O agronegócio cria áreas de monocultivo que destroem toda a biodiversidade, tornando o ambiente propício para elevadas populações de insetos e doenças

João Vitor Santos - Instituto Humanas Unisinos

Pensar um Brasil que não priorize uma produção agrícola em latifúndios de monoculturas para exterminar o uso de agrotóxicos. É o que propõe Fran Paula, engenheira agrônoma da coordenação nacional da Campanha Permanente contra os Agrotóxicos e pela Vida em entrevista concedida por e-mail para a IHU On-Line. Para ela, “o agronegócio utiliza largas extensões de terras, criando áreas de monocultivos. Dessa maneira, destrói toda a biodiversidade do local e desequilibra o ambiente natural, tornando o ambiente propício para o surgimento de elevadas populações de insetos e de doenças”. E a priorização por esse tipo de produção se reforça no conjunto de normas que concedem muito mais benefícios a quem adota o cultivo à base de agrotóxicos ao invés de optar por culturas ecológicas. Um exemplo: redução de impostos sobre produção desses agentes químicos, tornando o produto muito mais barato. Segundo Fran, em estados como Mato Grosso e Ceará essa isenção de tributos chega a 100%.

E, ao contrário do que se possa supor, a luta pela redução do consumo de agrotóxicos não passa necessariamente por uma reforma na legislação brasileira. Para a agrônoma, basta aplicar de forma eficaz o que dizem as leis e cobrar ações mais duras de órgãos governamentais. O desafio maior, para ela, é enfrentar a bancada ruralista e sua bandeira do agronegócio, além de cobrar ações que levem à efetivação da Política Nacional de Agroecologia. “A bancada ruralista ocupa hoje mais de 50% do Congresso brasileiro e vem constantemente atuando na tentativa do que consideramos legalizar a contaminação. Isso à medida que exerce forte pressão no governo sobre os órgãos reguladores, dificultando processos de fiscalização, monitoramento e retirada de agrotóxicos do mercado. E, ainda, vem tentando constantemente flexibilizar a lei no intuito de facilitar a liberação de mais agrotóxicos a interesse da indústria química financiadora de campanhas eleitorais”, completa.

Fran Paula é engenheira Agrônoma e também técnica da Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional – FASE. Hoje, atua na coordenação nacional da Campanha Permanente contra os Agrotóxicos e pela Vida. É um grupo que congrega ações com objetivo de sensibilizar a população brasileira para os riscos que os agrotóxicos representam e, a partir disso, adotar ações para acabar com o uso dessas substâncias.

Confira a entrevista.

IHU On-Line - No último dia 3 de dezembro, dia internacional da luta contra agrotóxicos, a Campanha contra os Agrotóxicos divulgou que cada brasileiro consome 5,2 litros de agrotóxicos por ano. Como chegaram à contabilização desses dados? O que esse valor indica acerca do uso de agrotóxicos no Brasil em relação a outros países do mundo que utilizam esses produtos na agricultura?

Fran Paula - O dado se refere à exposição ocupacional, ambiental e alimentar a que o brasileiro se encontra, devido ao uso indiscriminado de agrotóxico no país. O número se refere à média de exposição de agrotóxicos utilizados no ano em relação ao número da população brasileira. Esse número se eleva quando a referência são alguns estados produtores de grãos, como o caso do Estado de Mato Grosso. No ano de 2013, utilizou 150 milhões de litros de agrotóxicos, levando a população do Estado a uma exposição de 50 litros de agrotóxicos por pessoa ao ano.

Um dado revela que o Brasil é, desde 2008, o campeão no ranking mundial de uso de agrotóxicos. Ou seja, somos o país que mais consome venenos no Planeta.

IHU On-Line - A que atribuem esse consumo elevado de agrotóxicos?

Fran Paula - A opção clara da política agrícola brasileira pelo agronegócio é a grande responsável pela situação. O agronegócio utiliza largas extensões de terras, criando áreas de monocultivos. Por exemplo: soja, milho, algodão, eucalipto ou cana-de-açúcar. Dessa maneira, destrói toda a biodiversidade do local e desequilibra o ambiente natural, tornando o ambiente propício para o surgimento de elevadas populações de insetos e de doenças. Por isso este modelo de produção é dependente da química, só funciona com muito veneno. E, além de usar grande quantidade de agrotóxicos e transgênicos, não gera empregos e não produz alimentos.

A bancada ruralista ocupa hoje mais de 50% do Congresso brasileiro e vem constantemente atuando na tentativa do que consideramos legalizar a contaminação. Isso à medida que exerce forte pressão no governo sobre os órgãos reguladores (principalmente saúde e meio ambiente), dificultando processos de fiscalização, monitoramento e retirada de agrotóxicos do mercado. E, ainda, vem tentando constantemente flexibilizar a lei no intuito de facilitar a liberação de mais agrotóxicos a interesse da indústria química financiadora de campanhas eleitorais. Política essa que permite absurdos como o uso de agrotóxicos já banidos em outros países, havendo comprovação científica do grau de periculosidade destes produtos na saúde dos humanos e do meio ambiente.

No Brasil, um conjunto de normas reduz a cobrança de impostos sobre agrotóxicos. E a isenção destes impostos (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços - ICMS, Contribuição para Financiamento da Seguridade Social - COFINS, Programa de Integração Social – PIS e Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Público - PASEP, Tabela de Incidência do Imposto Sobre Produtos Industrializados - TIPI) pode chegar a 100% em alguns estados como Ceará e Mato Grosso.

Contradizendo as promessas das sementes transgênicas, os transgênicos elevaram o uso de agrotóxicos no país. Um exemplo é o da soja Roundup Ready, resistente ao herbicida glifosato. Com a entrada da soja transgênica, o consumo de glifosato se elevou mais de 150%. A Agência Nacional de Vigilância Sanitária - ANVISA, considerando o potencial aumento de resíduos do herbicida, determinou o aumento de 50 vezes no Limite Máximo Residual - LMR do glifosato na soja transgênica, passando de 0,2 mg/kg para 10 mg/kg. Assim, a ANVISA demonstra que os argumentos da Monsanto anunciando uma diminuição do uso de herbicida com o advento da soja transgênica não são verificáveis na realidade, o que já estava previsto com a expansão da indústria de Roundup no Brasil.

IHU On-Line - Quais são as culturas que recebem uma carga mais pesada de defensivos?

Fran Paula – Primeiramente: não existem defensivos. Defesa para quem? E do quê? Não existe essa terminologia na legislação. O termo é agrotóxicos e assim devemos tratar do assunto. O termo defensivo é utilizado pelos setores do agronegócio, incluindo as indústrias que os produzem, para tirar de foco a função desses produtos e seus efeitos nocivos à saúde da população e do meio ambiente. Da mesma forma que uso seguro de agrotóxicos é um mito. Isso faz parte do lobby da indústria química para esvaziar o debate sobre o risco que os agrotóxicos representam.

Entre os mais utilizados, destacamos: o Abamectina, um tipo de inseticida altamente tóxico, utilizado em plantações de batata, algodão e frutíferas; o Acefato, que é um inseticida que pertence à classe toxicológica III - Medianamente Tóxico e que é utilizado com frequência em plantações de couve, amendoim, brócolis, fumo, crisântemo, repolho, melão, tomate, soja, rosas, citros e batata; e o Glifosato, um herbicida bastante utilizado no combate a ervas indesejáveis no cultivo de soja, principalmente.

Não é o tipo de cultura que define a quantidade de agrotóxico utilizada. O que define é o modelo de produção. Posso ter um pimentão com alta concentração de agrotóxico, como posso ter um pimentão orgânico.

IHU On-Line - Quais os efeitos na saúde de quem consome alimentos com traços de agrotóxicos?

Fran Paula - Não existe agrotóxico que não seja tóxico. Portanto, não há nenhum que não apresente risco à saúde humana mediante exposição e posterior contaminação. Os agrotóxicos provocam dois tipos de efeitos: os agudos, provocados nas horas seguintes à exposição; e os crônicos, que podem se manifestar em meses, anos e até décadas, como resultado da acumulação dos resíduos químicos no organismo das pessoas.

Um exemplo nacional que tivemos de contaminação por agrotóxicos e acumulação destes resíduos no organismo foi a pesquisa que revelou contaminação do leite materno. Os efeitos de resíduos de agrotóxicos no nosso organismo podem manifestar complicações como alterações genéticas, problemas neurotóxicos, má-formação fetal, abortos, efeitos teratogênicos, desregulação hormonal, desenvolvimento de células cancerígenas. Reforço que a maioria dos agrotóxicos possui ação sistêmica e que medidas como lavar superficialmente os alimentos com água e sabão não são suficientes para eliminar os resíduos de agrotóxicos.

IHU On-Line - A campanha também alerta que há regiões no país em que o consumo de agrotóxicos é ainda maior. Quais são essas regiões e por que o consumo é tão elevado?

Fran Paula - Como já havia citado anteriormente, em alguns estados onde o agronegócio exerce um aparelhamento político forte e detém grandes áreas de monocultivos de soja e outras commodities, o consumo de agrotóxicos é maior.

Fran Paula - Estão submetidas a problemas de saúde devido à exposição direta aos agrotóxicos, devido à contaminação da água para consumo, do ar que respiram e do solo. Ainda sofrem as ameaças da pulverização aérea, como os milhares de casos pelo Brasil de populações que são banhadas diariamente por venenos, principalmente pelo desrespeito às medidas legais quanto aos limites desta pulverização tanto aérea quanto terrestre no entorno dessas comunidades. A este contingente de populações expostas a agrotóxicos cobramos atenção especial dos serviços de saúde como forma de promoção da vida e sobrevivência destas pessoas. Por isso uma das bandeiras de luta da Campanha tem sido a criação de áreas livres de agrotóxicos e transgênicos.IHU On-Line - Além do consumo de alimentos que foram expostos a agrotóxicos, a que riscos as pessoas que vivem em regiões de altos índices de aplicação desses defensivos estão submetidas?

IHU On-Line - O que é possível fazer para frear esse uso tão grande de agrotóxicos? Quais as alternativas junto às plantações para o controle de pragas?

Fran Paula - Analisemos a história da agricultura no mundo, com registros de 12 mil anos atrás. Já a história dos agrotóxicos tem registros de pouco mais de 50 anos. Ou seja, desde muito tempo é possível produzir sem usar agrotóxicos. São crescentes os investimentos em países da União Europeia, Japão, Índia, em práticas e técnicas de produção de não uso de agrotóxicos. O Brasil é um país atrasado na medida em que ainda utiliza um arsenal de produtos químicos provenientes da guerra. Nosso país precisa urgentemente rever o modelo de produção quem vem adotando, centrado no Agronegócio. Esse modelo concentra a terra, cria áreas de monocultivos e desertos verdes, adota pacotes tecnológicos (adubos químicos, sementes híbridas e transgênicas e agrotóxicos) ofertados pelas indústrias químicas. É preciso implementar o Plano Nacional de Redução de Agrotóxicos – PRONARA, vinculado à Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica, construído em 2014. Essa legislação prevê ações no campo da pesquisa de tecnologias sustentáveis de produção, crédito para o fortalecimento da agricultura de base agroecológica responsável pela produção de alimentos, investimentos em assistência técnica e extensão ruralagroecológica aos agricultores, retirada imediata dos agrotóxicos já banidos em outros países e que são utilizados livremente no Brasil e fim do subsídio fiscal aos agrotóxicos. Além disso, adoção de práticas de menor impacto, como o controle biológico de pragas e o manejo integrado; adoção de práticas agroecológicas de produção, que permitem a seleção natural das culturas, e variedades crioulas com maior resistência à incidência de insetos e doenças e que permitam a diversificação da produção e oferta de alimentos com base nos princípios da segurança alimentar e nutricional.

IHU On-Line - Uma das bandeiras da Campanha Permanente contra os Agrotóxicos e pela Vida é o fim da prática de pulverização aérea das lavouras. Por quê?

Fran Paula - A pulverização aérea de agrotóxicos é uma prática ameaçadora à vida. Diversos estudos científicos e casos de intoxicação humana e contaminação ambiental têm reiterado que não existem condições seguras para pulverização aérea. Além de tratar-se de uma técnica atrasada em termos de eficiência de aplicação, requer que sejam pulverizadas grandes quantidades de veneno para se atingir a quantidade desejada do ponto de vista agronômico, por conta das elevadas perdas. Estudos da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária - EMBRAPA mostraram que o percentual de perda pode chegar a mais de 80% em algumas culturas. Esse elevado percentual corrobora o fato de que grande parte do que é pulverizado atinge outros alvos que não os desejados, podendo contaminar água, lençóis freáticos e ainda atingir diretamente pessoas e outros seres vivos.

Entre os casos de contaminação via pulverização aérea, temos o ocorrido em 2013 na Escola Municipal de São José do Pontal, localizada na região rural do município de Rio Verde, Goiás. Ali, essa prática resultou em diversos casos de intoxicação aguda de trabalhadores e de alunos de 9 a 16 anos. Nesse episódio, a pulverização teria sido feita sobre a lavoura de milho localizada a poucos metros da escola, não obedecendo aos limites mínimos de distância recomendados na legislação. O produto pulverizado, segundo a empresa de aviação agrícola, era o inseticida Engeo Pleno, fabricado pela multinacional Syngenta. Um de seus componentes é o tiametoxam, do grupo dos neonicotinoides, produto altamente tóxico para abelhas e que por isso havia sido proibido para uso por pulverização aérea pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente - IBAMA. No entanto, após pressão do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento - MAPA, a proibição foi suspensa.

IHU On-Line - Qual sua avaliação sobre a legislação brasileira no que diz respeito à liberação e uso de agrotóxicos? Recentemente, a ANVISA aprovou a iniciativa para propor o banimento dos agrotóxicos Forato e Parationa Metílica. Como avalia essa iniciativa e quais as implicações desses agrotóxicos?

O efeito danoso dos agrotóxicos é reconhecido e estabelecido em lei. A ANVISA é o órgão responsável no âmbito do Ministério da Saúde pela avaliação da toxicidade dos agrotóxicos e seus impactos à saúde humana; emite o parecer toxicológico favorável ou desfavorável à concessão do registro pelo Ministério da Agricultura.

Fran Paula - O problema em geral não está na lei 7802/89, que define a Legislação dos Agrotóxicos no Brasil, e sim no não cumprimento da mesma. Quanto ao registro de agrotóxicos, a lei estabelece a proibição para os quais o Brasil não disponha de métodos para desativação de seus componentes, de modo a impedir que os seus resíduos remanescentes provoquem riscos ao meio ambiente e à saúde pública, para os quais não haja antídoto ou tratamento eficaz no Brasil. Ainda proíbe registro aos que revelem características teratogênicas, carcinogênicas ou mutagênicas, de acordo com os resultados atualizados de experiências da comunidade científica, que provoquem distúrbios hormonais, danos ao aparelho reprodutor, de acordo com procedimentos e experiências atualizadas na comunidade científica. Não permite registro de agrotóxicos que se revelem mais perigosos para o homem do que os testes de laboratório com animais tenham demonstrado, segundo critérios técnicos e científicos atualizados e também cujas características causem danos ao meio ambiente. O risco maior está nas inúmeras tentativas de flexibilização da lei por parte da bancada ruralista, cujo propósito é defender os interesses das indústrias químicas e assim liberar o registro de mais agrotóxicos no mercado.

IHU On-Line - Quais os pontos mais urgentes em que a legislação precisa avançar ou ser revista?

Fran Paula - A legislação brasileira, apesar de conter normas de restrição ao registro de agrotóxicos, não estipula tempo para reavaliação dos agrotóxicos. Acaba ficando a critério dos órgãos responsáveis pelo registro solicitarem a mesma. No Brasil, a validade do registro do produto é de tempo indeterminado, ao contrário de países como Estados Unidos, onde o registro tem validade por 15 anos. Na União Europeia são 10 anos, no Japão três anos e no Uruguai quatro anos. Apesar de a lei atribuir responsabilidades quanto ao monitoramento e fiscalização, o cenário é de uma capacidade reduzida dos órgãos de saúde e de meio ambiente. Isso ocorre nas três esferas de governo, no que diz respeito ao desenvolvimento de serviços de monitoramento e controle de agrotóxicos.

IHU On-Line - Um dos herbicidas mais usados e conhecidos no Brasil e no mundo é o Glifosato, chamado “mata mato”. Como acaba com praticamente todas as ervas daninhas, além da aplicação em zona rural, há municípios que usam em áreas urbanas, fazendo o que algumas pessoas chamam de “capina química”. Que problemas para o meio ambiente, no campo e na cidade, o uso indiscriminado dessa substância pode causar?

Fran Paula - Mata mato é um dos nomes comerciais do herbicida Glifosato. Possui uma ação sistêmica, ou seja, ao ser aplicado nas folhas das plantas é translocado até as raízes e é não seletivo. Mata todo tipo de plantas, exceto as transgênicas que apresentam resistência a este princípio ativo. Dentre os riscos ao meio ambiente estão a contaminação do lençol freático e do solo, com a morte de microrganismos e consequente perda da fertilidade. E se tratando de capina química, há uma nota técnica da ANVISA de 2010 recomendando a proibição dessa prática em ambientes urbanos, devido à exposição da população ao risco de intoxicação, além de contaminar a fauna e a flora local.

IHU ON-Line - E para a saúde de quem se expõe ao Glifosato?

Fran Paula - Há estudos toxicológicos do Glifosato em diversos países e todos são unânimes nos resultados para efeitos tóxicos na saúde. Estes estudos revelam que a toxicidade do Glifosato provoca os seguintes efeitos: toxicidade subaguda (lesões em glândulas salivares), toxicidade crônica (inflamação gástrica), danos genéticos (em células sanguíneas humanas), transtornos reprodutivos (diminuição de espermatozoides e aumento da frequência de anomalias espermáticas) e carcinogênese (aumento da frequência de tumores hepáticos e de câncer de tireoide). Os sintomas de intoxicação incluem irritações na pele e nos olhos, náuseas e tonturas, edema pulmonar, queda da pressão sanguínea, alergias, dor abdominal, perda de líquido gastrointestinal, vômito, desmaios, destruição de glóbulos vermelhos no sangue e danos no sistema renal. O herbicida ainda pode continuar presente em alimentos num período de até dois anos após o contato com o produto. Em solos pode estar presente por mais de três anos, dependendo do tipo de solo e clima. Apesar da classificação toxicológica que recebe no Brasil, o produto é considerado um biocida. Tanto que já foi banido de países como a Noruega, Suécia e Dinamarca.

IHU On-Line - Qual o papel de outros órgãos, como Ministério Público, nas discussões e no combate ao uso indiscriminado de agrotóxicos?

Fran Paula - A atuação do Ministério Público é fundamental diante do contexto e cenário que o Brasil se encontra, de ineficiência de aplicação da lei e da omissão dos órgãos de monitoramento e fiscalização. O Ministério Público do Trabalho lançou em 2009 o Fórum Nacional de Combate aos Efeitos dos Agrotóxicos. Criado para funcionar como instrumento de controle social, o Fórum Nacional conta com a participação de organizações governamentais e não governamentais, sindicatos, universidades e movimentos sociais, além do Ministério Público. Além do Fórum Nacional, foram sendo criados os fóruns estaduais de combate aos impactos dos agrotóxicos com o mesmo objetivo. A Campanha participa do Fórum Nacional e dos estaduais, com objetivo de levantar elementos e embasar o Ministério Público em ações que visem à redução do uso de agrotóxicos e promoção da agroecologia.

IHU On-Line - A Campanha Permanente contra os Agrotóxicos e pela Vida já destacou que 2015 será um ano em que se desenvolverão diversas políticas nacionais de agroecologia e produção orgânica. Que políticas são essas?

Fran Paula - Em agosto de 2012, a presidenta Dilma Rousseff instituiu a Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica – PNAPO, por meio do Decreto nº 7.794, de 20-08-2012, resultado de intensos diálogos e reivindicações dos movimentos sociais. A partir de então, governo e sociedade civil se debruçaram na tarefa de construção de um Plano Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica – PLANAPO.

No campo produtivo, o Plano propõe mecanismos capazes de atender à demanda por tecnologias ambientalmente apropriadas, compatíveis com os distintos sistemas culturais e com as dimensões econômicas, sociais, políticas e éticas no campo do desenvolvimento agrícola e rural. Ao mesmo tempo, apresenta alternativas que buscam assegurar melhores condições de saúde e de qualidade de vida para a população rural. Assim foi criado, no âmbito da PNAPO, o Programa Nacional de Redução do Uso de Agrotóxicos – PRONARA. É construído numa parceria da Campanha com diversos ministérios e órgãos subordinados, além de outros movimentos sociais. O PRONARA contém 35 iniciativas que, se levadas a cabo, melhorariam drasticamente as condições de saúde do povo brasileiro em relação aos agrotóxicos. A lógica do PRONARA se desenvolve como base em iniciativas estruturadas de forma articulada, cobrindo seis dimensões: registro; controle, monitoramento e responsabilização da cadeia produtiva; medidas econômicas e financeiras; desenvolvimento de alternativas; informação, participação e controle social; e formação e capacitação.

O prazo de três anos para execução desta primeira edição do Plano Nacional de Agroecologia vincula suas iniciativas às ações orçamentárias já aprovadas no Plano Plurianual de 2012 a 2015. Trata-se, portanto, de um forte compromisso para trazer a agroecologia, seus princípios e práticas, não só para dentro das unidades produtivas, como para as próprias instituições do Estado, influenciando a agenda produtiva e de pesquisa e os mais diferentes órgãos gestores de políticas públicas. Em síntese, um grande avanço da sociedade brasileira na construção de um modelo de desenvolvimento sustentável.

IHU On-Line - O que mais deve pautar a luta do movimento em 2015?

Fran Paula - Já avaliamos que 2015 será um ano de grandes desafios e lutas intensas, a começar pelo cenário sombrio da nomeação de Kátia Abreu para o Ministério da Agricultura. Ela tem sido até agora uma representante atuante da bancada ruralista no Congresso e defensora dos interesses do agribusiness brasileiro. Também queremos garantir mobilização social articulada e contrária às iniciativas da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança - CTNBIO para a não liberação de mais variedades transgênicas.

Hoje, a Campanha tem mais de 100 organizações e movimentos sociais atuando de ponta a ponta do país. A meta para 2015 é ampliar e fortalecer nosso diálogo com a sociedade, alertando para o risco que os agrotóxicos representam, reforçando a necessidade e urgência da efetivação de políticas públicas de promoção da agroecologia, solução para a produção de alimentos saudáveis a todos os brasileiros.

Temos, ainda, nossa agenda de luta, onde são organizadas as ações massivas da Campanha: 07 de abril – Dia Mundial da Saúde e o aniversário de quatro anos da Campanha, 16 de outubro – Dia Mundial da Alimentação Saudável e 03 de dezembro – Dia Mundial de Luta contra os Agrotóxicos. 2015 será um ano das Conferências Nacionais, a exemplo da Conferência Nacional de Saúde e a Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. São espaços onde estaremos reforçando a necessidade do controle social e da importância da efetivação das políticas públicas de promoção da agroecologia e do não uso de agrotóxicos.

Créditos da foto: Secretaria de agricultura e abastecimento / Flickr

Texto original: CARTA MAIOR

quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

A concentração das empresas nas gôndolas do supermercado

Dez grandes companhias abocanham de 60% a 70% das compras de uma família e tornam o Brasil um dos países com maior nível de concentração no mundo.

Reporter Brasil

Talvez passe despercebido àqueles que vão ao supermercado que um conjunto pequeno de grandes transnacionais concentra a maior parte das marcas compradas pelos brasileiros. Dez grandes companhias – entre elas Unilever, Nestlé, Procter & Gamble, Kraft e Coca-Cola – abocanham de 60% a 70% das compras de uma família e tornam o Brasil um dos países com maior nível de concentração no mundo. O que sobra do mercado é disputado por cerca de 500 empresas menores, regionais.

Quer um exemplo dessa concentração? Quando um consumidor vai à seção de higiene pessoal de um estabelecimento comercial e pega nas gôndolas um aparelho de barbear Gilette, um pacote de absorventes Tampax e um pacote de fraldas Pampers, ele está comprando três marcas que integram o portfólio da gigante norte-americana Procter & Gamble – que também é dona dos produtos Oral-B, para dentes.

O poder da Unilever

Uma dona de casa vai uma vez por mês ao supermercado fazer as compras para sua família: ela, o marido e duas crianças. Para a cozinha, ela compra Knorr, Maizena, suco Ades e a maionese Hellmann’s. Para a limpeza da casa, sabão em pó Omo e Brilhante. Compra ainda Comfort para lavar a roupa. Passa na área de cosméticos e pega o desodorante Rexona para seu marido, e sabonete Lux para ela. Compra pasta de dente Closeup, a marca preferida da filha.

Quase ao sair do supermercado, o filho liga e diz que quer sorvete. Ela compra picolés Kibon. Todas as marcas adquiridas por ela pertencem à Unilever, que em 2013 foi o maior investidor no mercado publicitário do Brasil, com R$ 4,5 bilhões aplicados. Omo possui 49,1% de participação de mercado em sua categoria, segundo pesquisa do instituto Nielsen em 2012. A Hellmann´s detém mais de 55% do mercado. A Unilever vende cerca de 200 produtos por segundo no Brasil.


Mercado de Bebidas


O que o refrigerante Coca-Cola, o energético Powerade, o suco Del Vale, a água Crystal e o chá Matte Leão têm em comum? Eles são marcas da Coca-Cola, que apenas no segmento de refrigerantes detém cerca de 60% do mercado nacional. E sabe quando está um dia de calor e você quer tomar uma cerveja? Há uma grande chance de que ela seja produzida pela Ambev, que concentra cerca de 70% do mercado com produtos como Brahma, Antarctica, Skol e Bohemia. A companhia Brasil Kirin (ex-Schincariol) possui pouco mais de 10%, e o Grupo Petrópolis, cerca de 10%.

Quer um chocolate?

Na hora dos desenhos, uma criança se senta à frente da televisão e pede para a mãe alguma coisa para comer. Uma vez no mês, ela decide trocar as frutas por doces. A mãe então oferece algumas opções: um chocolate Suflair ou um Kit Kat? Um chá Nestea ou um Nescau? Um Chambinho ou iogurte Chandelle? Uma bolacha Tostines ou Negresco?


No fundo, ele está perguntando à criança qual marca e linha de produtos da Nestlé ela quer, porque todas acima citadas pertencem à gigante suíça. O segmento de chocolates é concentrado. Segundo pesquisa do instituto Mintel, ele é dominado por três companhias líderes que possuem 85% do mercado. Kraft lidera ranking, seguida por Nestlé e Garoto (a empresa Garoto pertence à Nestlé, mas tem posicionamento independente, e ambas somam 46% de participação).

Empresas Brasileiras também concentram mercado

A BRF – nascida da união entre Sadia e Perdigão – é líder em vários segmentos das gôndolas: está presente em 28 das 30 categorias de alimentos perecíveis analisadas pelo instituto Nielsen, como massas, congelados de carne, margarinas e produtos lácteos. A BRF está na mesa de aproximadamente 90% dos 45 milhões de domicílios do Brasil. Ela é responsável por 20% do comércio de aves no mundo. Em pizzas, a empresa detém 52,5% do mercado e 60% do de massas congeladas no país.

Outra empresa brasileira com grande presença na mesa dos brasileiros e de outros países é a JBS, dona de várias marcas conhecidas, como Friboi, Seara, Swift, Maturatta e Cabana Las Lilas. Com essa variedade de produtos e a presença em 22 países de cinco continentes (entre plataformas de produção e escritórios), ela atende mais de 300 mil clientes em 150 nações.


Governo brasileiro incentivou a concentração empresarial?

Para alguns economistas, tem havido um aumento da presença do Estado na economia brasileira, um movimento que ganhou força no segundo mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, quando o BNDES passou a conceder financiamentos a juros mais baixos para promover as chamadas “campeãs nacionais”.

Nesse caso, foi estimulada a fusão entre as operadoras de telefonia Brasil Telecom e a Oi, e a criação da BRF, fruto da união entre Sadia e Perdigão. Esse movimento de empresas brasileiras mais fortes no exterior cria gigantes, mas não necessariamente essa liderança traz vantagens para os consumidores brasileiros, que continuam com poucas opções quando vão ao supermercado. Será que essa ação do Estado beneficiou o consumidor final?

Em paralelo, as empresas estatais têm ganhado peso. No setor bancário, CEF e Banco do Brasil estão entre as cinco maiores instituições do país, sendo que a Caixa é líder em financiamento habitacional, e o BB, no setor agrícola. Em energia, a Petrobras é a maior empresa do setor, enquanto a Eletrobrás detém a liderança em geração de energia elétrica.

Mas essa concentração de poder nas empresas públicas é diferente das privadas. Um exemplo está no setor de energia, em que a Petrobras tem tido uma política de reajuste dos preços dos combustíveis alinhada à política de inflação do governo federal. Empresas estatais bem administradas podem render bons lucros, que se tornam dividendos para o governo federal, que, por sua vez, com esse dinheiro dos lucros, pode investir em setores essenciais, como saúde e educação.

Créditos da foto: reprodução

Texto original: CARTA MAIOR . 

A rota para uma mudança climática imprevisível

No lugar das monoculturas industriais, precisamos de uma mudança para práticas agroecológicas que conservem a biodiversidade e garantam a biossegurança.

Vandana Shiva - Esquerda.net

Os nossos atuais modos de produção e consumo, que começaram com a Revolução Industrial e se agravaram com o advento da agricultura industrial têm contribuído para ambas.

Se não forem tomadas medidas para reduzir as emissões de Gases de Efeito de Estufa (GEE), podemos experimentar um catastrófico aumento de 4°C na temperatura até ao final do século. Mas a mudança climática não causa apenas o aquecimento global. Ela está a intensificar as secas, inundações, ciclones e outros eventos climáticos extremos, como testemunhamos em diversas partes do mundo.

Nunca tínhamos ultrapassado as 280 ppm (partes por milhão) até à Revolução Industrial e os atuais níveis de CO2 (dióxido de carbono) ultrapassaram as 400 ppm. O óxido nitroso (N2O) e o metano são GEE, como o CO2, só que mais potentes. De acordo com o Relatório da Convenção sobre Mudanças Climáticas (UNFCCC), o N2O tem cerca de 300 vezes mais potencial para causar o aquecimento global do que o CO2, enquanto que o metano é em torno de 20 vezes mais forte.

As emissões de óxido nitroso e de metano aumentaram dramaticamente devido à agricultura industrial. O óxido nitroso é emitido através do uso de fertilizantes nitrogenados sintéticos e o metano é emitido a partir das atividades pecuárias que produzem leite, carne e ovos.

A Conferência da Organização das Nações Unidas de Leipzig sobre os Recursos Fitogenéticos, em 1995, avaliou que 75 por cento da biodiversidade do mundo havia desaparecido na agricultura devido à chamada Revolução Verde (programa da Fundação Rockefeller liderado pelo agrónomo norte-americano Norman Ernest Borlaug) e ao advento da agricultura industrial. O desaparecimento de polinizadores e organismos benéficos ao solo é outra dimensão da erosão da biodiversidade devido à agricultura industrial.

Mudanças climáticas, agricultura e biodiversidade estão intimamente ligadas. O avanço das monoculturas e o aumento no uso de fertilizantes químicos, combinados com a destruição de habitats, têm contribuído para a perda da biodiversidade, que faria o sequestro de gases de Efeito de Estufa.

Monoculturas químicas, mais vulneráveis ao fracasso no contexto de um clima instável, não são sistemas nos quais podemos confiar para garantir alimentos em tempos de incerteza. O processo de adaptação às alterações climáticas imprevisíveis requer diversidade em todos os níveis e, sistemas biodiversos não são apenas mais resistentes às mudanças climáticas, como também mais produtivos em termos de nutrição por hectare.

A humanidade estava informada e não adotou medidas destinadas a evitar às crises do clima e da biodiversidade. Na RIO-92, a comunidade internacional assinou dois acordos juridicamente vinculativos: as Convenções sobre o Clima e Biodiversidade; ambas baseadas no conhecimento das ciências ambientais e nos crescentes movimentos ecológicos. Um deles foi a resposta científica ao impacto da poluição dos combustíveis fósseis, o outro foi a resposta científica à erosão da biodiversidade devido à propagação de monoculturas industriais e químicas, bem como à poluição genética causada por organismos geneticamente modificados (OGM).

O Artigo 19.3 da Convenção das Nações Unidas sobre Diversidade Biológica prevê que as partes considerem a necessidade de um Protocolo que estabeleça procedimentos para a transferência, manipulação e uso de organismos vivos modificados (OVMs) resultantes da biotecnologia que possam ter um efeito adverso sobre a biodiversidade e seus componentes. Isto levou à implementação do Protocolo de Biossegurança.

A biossegurança cientificamente avalia o impacto dos organismos geneticamente modificados sobre o ambiente, a saúde pública e as condições socioeconómicas, garantindo a sustentabilidade social e ecológica de sistemas agrícolas e alimentares. Os sistemas baseados na agroecologia conservam a biodiversidade, aumentam a saúde e a nutrição por área de cultivo, garantem a segurança alimentar e aumentam a resiliência ao clima.

Mas, desde 1992, os grandes poluidores – a indústria de combustíveis fósseis e a indústria agroquímica (que é agora também a indústria da biotecnologia) – fizeram todo o possível para subverter os tratados ambientais internacionais sobre mudanças climáticas e biodiversidade, que são obrigatórios e baseados cientificamente. Porém, os seus ataques às ciências ambientais mantêm-se sem a necessária base científica e são absolutamente irresponsáveis, porque eles lançam-nos diretamente nos desastres e catástrofes climáticas enquanto impedem a realização de uma mudança, apesar de evidências científicas mostrarem que temos alternativas melhores e que funcionam.

Temos que nos afastar de uma agricultura industrial quimicamente-intensiva e do sistema alimentar global centralizado, baseado na produção de commodities, que contribui para as emissões. No lugar de uma biodiversidade destruída pelas monoculturas industriais, incluindo aquelas baseadas em sementes transgénicas, precisamos de uma mudança para práticas agroecológicas que conservem a biodiversidade e garantam a biossegurança. A transição para uma agricultura biodiversamente-intensiva e ecologicamente-intensiva aborda simultaneamente tanto a crise climática quanto a da biodiversidade, e, ao mesmo tempo, enfrenta a crise alimentar.

Embora a agricultura industrial seja um dos principais contribuidores para as mudanças climáticas e mais vulnerável a elas, há uma tentativa por parte da indústria da biotecnologia de usar a crise climática como uma oportunidade para expandir ainda mais o uso de OGMs e aprofundar o seu monopólio das sementes baseadas na biopirataria através de patentes, em detrimento das sementes resilientes ao clima que foram aprimoradas pelos agricultores ao longo de gerações.

Mas, como disse Einstein: “Nós não podemos resolver um problema com a mesma mentalidade que o criou”. Sistemas intensivos, centralizados, baseados na monocultura e em combustíveis fósseis, incluindo agricultura OGM, não são flexíveis. Eles não conseguem adaptar-se e evoluir. Precisamos de flexibilidade, resiliência e adaptação a uma nova realidade. Esta resiliência vem da diversidade. Esta diversidade de conhecimento, economia e política é o que eu chamo de Democracia da Terra.

A nossa vizinha, Caxemira, enfrentou uma tragédia este ano, assim como Uttarakhand, na Índia, viveu no ano passado. Quando a chuva de um dia possui cinco a seis vezes mais volume do que o normal, é um evento extremo. Isto é o que significa a mudança climática. Ela custou vidas, dizimou vilas, fazendas, estradas, pontes. As atividades humanas criaram desastres como o dilúvio na Caxemira. A ação humana é necessária para prevenir essas catástrofes climáticas. Não podemos ficar como espectadores mudos enquanto o paraíso da Índia na terra torna-se o “Paraíso Perdido”.

Artigo de Vandana Shiva* publicado em envolverde.com.br e originalmente na edição 217 da Eco21.

* Vandana Shiva é diretora executiva do Fundo Navdanya, física, ecofeminista e ativista ambiental.

Créditos da foto: Bioversity International/S. Landersz - Flickr

Texto original: CARTA MAIOR

Petróleo: mercado arde e as petrolíferas conspiram

Rússia, Irã e Venezuela são os mais afetados hoje, mas se a indústria do xisto não paga os empréstimos aos bancos, está formada a crise mundial.

Najar Tubino

Trata-se de uma trama para jogar a humanidade cada vez mais no buraco. É um jogo extremamente perigoso, mas que faz parte da indústria petrolífera mundial, desde que furaram o primeiro poço na Pensilvânia no século XIX. Primeiro ponto: até a década de 1950 as chamadas Sete Irmãs – Exxon, Mobil, Shell, BP, Chevron, Texaco e Gulf Oil – detinham 55% da produção mundial. Com exceção da Shell, anglo-holandesa, as outras são petrolíferas nascidas nos Estados Unidos, na verdade quase todas descendentes do primeiro truste do mundo montado por John Rockfeller. Hoje são quatro “majors” e elas detêm 10% da produção e 5% das reservas mundiais. Os dados são do professor da Escola Politécnica da UFRJ, Marcelo Marinho Simas, que também integra o corpo técnico da Petrobras.

O trabalho elaborado por ele chamado “O Novo Papel das National Oil Companies” cita as maiores consultorias do setor, como a Accenture e a PFC Energy que mostram a nacionalização das reservas petrolíferas mundiais – 77% das reservas de petróleo e 51% das reservas de gás. Até a década de 1970, antes do embargo dos árabes de 1973, as Sete irmãs nadavam de braçada, faziam o que queriam no Oriente Médio, no Golfo Pérsico, era a “bandeira na frente e os negócios”, como diziam os executivos. O trânsito era livre, porque mesmo pagando apenas 50% dos contratos aos governos ou monarquias locais, as corporações manipulavam a tecnologia. Apenas em 1976, que os sauditas assumiram o controle da Aramco, uma petrolífera montada com quatro sócios estadunidenses. Conforme relato do livro de Daniel Yerguin – Petróleo, um dossiê de quase mil páginas.

Corporações precisam de reservas

Então as corporações precisam de novas reservas. Claro que tiveram que investir nas areias de piche de Alberta, no Canadá, no xisto betuminoso de Dakota do Norte e do Texas, e em águas profundas na África, no sudeste asiático e no Brasil. Em setembro do ano passado, um relatório da Agência de Informações de Energia dos Estados Unidos criticava a posição do Brasil por nomear a Petrobras como única operadora do pré-sal, com exigências de 60% local nos conteúdos dos equipamentos. “as operadoras reclamam para si o direito de operarem no pré-sal”, registra uma matéria do Brasil Econômico de setembro de 2014.

Como diz o professor Marcelo Simas as “IOCs” – International Oil Companies – precisam redefinir seu papel no mercado mundial, ou se tornarão prestadoras de serviços de alta tecnologia para as companhias nacionais. É preciso esclarecer que o negócio do petróleo rende lucros altos em dois segmentos: exploração (extração) e na produção, que os técnicos chamam de “upstream”. O restante, refino, comercialização, distribuição e varejo chamado de dowstream, o retorno é baixo. A vantagem da Arábia Saudita está neste fato: custo de produção de no máximo 10 dólares por barril, enquanto um barril do xisto custa entre 50 e 70 dólares e das areias de piche (betuminosas) entre 70 e 90 dólares. No caso do pré-sal, ou exploração em águas profundas, o custo é de 60 a 80 dólares.

Estados Unidos inflaram reservas de xisto

Porque o mercado arde? Esta semana a cotação do barril Brent fechou abaixo dos 50 dólares. O economista francês Jacques Safir, diretor de pesquisa da Escola Superior de Ciências Sociais, diz que a rentabilidade da indústria do xisto nos Estados Unidos começa quando a cotação do petróleo atinge 80 dólares. Também é conhecido o fato de que pelo menos 50% das empresas que exploram xisto nos Estados Unidos são independentes. Lá basta ter uma terra e algo embaixo, que está liberado. Fura, cava o poço e o resto vai pro beleléu, inclusive a concorrência. O cálculo varia, mas está entre 4 e 6 milhões de poços exploratórios de xisto, uma indústria que alavancou a economia estadunidense injetando 800 bilhões nos últimos cinco anos. Porém, a exploração depende de financiamento dos bancos. E aí o negócio complica. Segundo o analista da Casey Research, Marin Katusa, desde 2008 o mercado corporativo do xisto aumentou sua dívida corporativa em US$150 bilhões.

“- Com 45 dólares o barril não é possível refinanciar a dívida, isso é uma má notícia para a indústria do xisto”, diz ele, numa nota publicada na Voz da Rússia, no final de 2014.

Ainda em dezembro as notícias para a indústria do xisto, que os estadunidenses consideram a revolução da energia barata e ao mesmo tempo quase a autossuficiência – os cálculos são de produção de 40% da produção de gás nos próximos 20 anos – pioraram. Na edição da Revista Nature de dezembro, um estudo da Universidade do Texas apontava para uma redução das reservas do país. Simplesmente, o estudo desmente a versão otimista do xisto, com base na análise das quatro maiores reservas. Os pesquisadores da área de petróleo sabem muito bem que a produção do xisto decai muito rapidamente depois da primeira leva de óleo retirada. Cai pela metade. Ou seja, os pesquisadores da Universidade do Texas estão dizendo que em 2030 os Estados terão metade dos 18 bilhões de metros cúbicos, total das reservas divulgados oficialmente.

Risco iminente – a indústria do xisto não pagar empréstimos

As corporações petrolíferas não gostam de concorrentes. Quando uma empresa quis construir um oleoduto na Pensilvânia para tirar o monopólio da Standard Oil, de John Rockfeller, ele mandava jogar água fervendo nos trabalhadores que escavavam o oleoduto, das locomotivas que margeavam a construção. Ou seja, quebrar as pequenas concorrentes do gás de xisto, que certamente serão incorporadas logo em seguida, faz parte do jogo. Os sauditas também não gostam da concorrência do xisto, mas mesmo assim comunicaram aos russos, que a política de queda de preços vai continuar. A Rússia depende 97% do petróleo e gás para movimentar sua economia. Produz 10 milhões de toneladas de petróleo por dia e tem a maior reserva do gás do mundo – 45 trilhões de metros cúbicos. Os dois prejudicados, em seguida, são Irã e Venezuela. Se a indústria do xisto não paga os empréstimos aos bancos está formada a crise mundial. A oferta de petróleo aumenta, os preços continuam desabando. Nunca esquecendo: as petrolíferas também compram petróleo quando o preço está muito baixo. E se houver instabilidade nos países produtores, que possuem grandes reservas, quando alguns setores internos começam a pregar a privatização das empresas nacionais, quem ganhará? As quatro irmãs. Um trecho do trabalho do professor Marcelo Simas:

“-Nos anos 1990, com as fusões e aquisições da Exxon-Mobil, BP-Amoco, Arco, Elf-Total-Fine, Chevron-Texaco, Repsol-YPF e Conoco Philips as ‘majors’ voltaram a ganhar espaço no mercado devido à falta de tecnologia de alguns produtores para exploração de petróleo, além da exigência de abertura de mercados, desregulação e privatizações promovidas no mundo inteiro pelas ideias neoliberais de Margareth Thatcher e Ronald Reagan. As ideias foram introduzidas nos pacotes de assistência dos países em dificuldades que iam ao FMI e ao BIRD, para renegociar suas dívidas”.

Nesta época, Margareth Thatcher vendeu 51% das ações que o governo possuía na Brites Petróleo, desde que os ingleses, ainda na época de Wilson Churchill, entraram na Pérsia para explorar petróleo com a empresa então chamada Anglo Perdiam, com participação governamental. E ali permaneceram por 75 anos, incluindo o golpe que colocou o Xá Rezha Pavlevi no poder por 26 anos – até a queda em 1979.

Petróleo vai continuar dominando

Agora vamos à trama. É por demais conhecido que vivemos uma época de mudança climática e que as emissões de gás carbônico, o maior dos gases estufa, precisam ser reduzidas. Em 2012, elas atingiram 31,6 gigatoneladas. E até 2020, ou seja, daqui a cinco anos, não podem passar de 44 gigatoneladas, para que o mundo não sofra um aumento de dois graus centígrados na temperatura. São números oficiais da Agência Internacional de Energia, criada em 1974, logo após o embargo do petróleo realizado pelos árabes e que só tem 28 sócios. A mesma AIE considera que o consumo dos combustíveis fósseis precisa ser reduzido em 50% até 2050. Um número considerado irrealista pelas petrolíferas, conforme está registrado no relatório Panorama Energético Mundial, publicado há mais de 50 anos pela Exxon, a maior petrolífera do mundo, com lucro de US$40 bi em 2012.

“- O petróleo e outros combustíveis líquidos continuarão sendo a maior fonte de energia do mundo em 2040. O gás natural será o combustível com maior crescimento até 2040, com uma demanda crescente na ordem de 60%. Em 2040, 90% dos transportes globais será feito por combustíveis baseados em petróleo bruto, comparado a 95% nos dias de hoje. As emissões de CO2, relacionadas à energia global serão estabilizadas por volta de 2030, permanecendo inalteradas em 2040”.

A corporação deixa claro o seguinte: “considerar todos os aspectos da energia não é um exercício acadêmico para a ExxonMobil, porque investimos bilhões de dólares em projetos a cada ano com base nas previsões encontradas no Panorama Energético.” Vou acrescentar um adendo, agora, da Chevron:

“- O mundo já produziu um trilhão de barris de petróleo até agora e ao longo do século, cerca de dois trilhões de barris se espera sejam produzidos a partir de reservas provadas convencionais e não convencionais – xisto e areias betuminosas”.

Querem enterrar 10 bilhões de toneladas de carbono

No relatório de sustentabilidade da Shell de 2013 comecei a entender porque as petrolíferas continuarão extraindo petróleo e as emissões de CO2 serão “estabilizadas”. Muito simples: chama-se tecnologia CCS – carbon captured and storage, ou seja, captura e armazenamento do carbono no subsolo. Popularmente: enterrar a sujeira embaixo da terra, usando poços de óleo e gás vazios, aquíferos salinos embaixo do mar ou formações de leito de carvão. Mais isso não é o mais impressionante. Outro pesquisador da Escola Politécnica da UFRJ, Victor Paulo Peçanha Esteves, no trabalho intitulado “Política e regulação de captura e armazenamento geológico de carbono – desafios para o Brasil” registrou a informação: num relatório do G-8 de 2010 foram apontados que 80 projetos de CCS começam a operar entre 2015 e 2020 – 73 deles em países desenvolvidos. Entretanto, até 2050 são previstos 3.400 novos projetos de CCS, 65% em países em desenvolvimento. A Agência Internacional de Energia confirma que 15% do CO2 emitido será enterrado até 2050.

Quanto eles pretendem enterrar de CO2, eis a questão. Somente 10 bilhões de toneladas, isso mesmo, 10 gigatoneladas. O que pode acontecer com um poço de milhão de toneladas de CO2 armazenado?

“- Quando um carboduto de alta pressão sofre um vazamento, a pressão irá cair rapidamente, desprendendo uma grande quantidade de energia. Essa energia irá fazer com que o solo acima do carboduto seja ejetado causando possíveis danos materiais e de vida. A dispersão se dá em forma de uma nuvem, que se move perto da superfície. A concentração de 15% do volume em CO2 leva a perda da consciência em menos de um minuto”, explica o pesquisador da Escola Politécnica.

Canadá inaugurou projeto de CCS

Um poço pode sofrer corrosão, defeitos de material, problemas na construção, tremores de terra, inundações subterrâneas, atividades humanas no entorno. A Shell, por exemplo, queria instalar um projeto para captura de 10 milhões de toneladas da planta de gaseificação de hidrogênio na Usina de Pernis, perto de Roterdã. O CO2 seria transportado por um carboduto de 20 km e injetado em dois campos vazios a 1.852 metros, sob a cidade de Barendrecht. O projeto foi aprovado pelo governo central, pelo alto parlamento, mas a municipalidade vetou, e ele foi cancelado.

O primeiro projeto global de captura e armazenamento de carbono começou a funcionar no Canadá em outro do ano passado, na localidade de Estevan, província de Saskatchewan do Sul, numa usina termoelétrica movida a carvão com 110MW de potência. Vão capturar um milhão de toneladas por ano. Os Estados Unidos tem 1.266 usinas térmicas movidas a carvão, que é o combustível fóssil que mais emite CO2. A Noruega e o Reino Unido estão testando, desde 1996, usar um aquífero salino no Mar do Norte para enterrar carbono. Chama-se Utsira e tem capacidade para 42 gigatoneladas. O projeto pretende enterrar as emissões da Noruega, do Reino Unido e parte da Bélgica e da Alemanha.

O mercado do petróleo arde, além disso, os poderosos pretendem enterrar a sujeira explosiva, enquanto discutem as metas da Conferência do Clima em 2015.

Créditos da foto: - POD - / Flickr

Texto original: CARTA MAIOR