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domingo, 6 de março de 2016

Carta escrita, em 1854, pelo chefe Seatle ao presidente dos EUA

Este documento – dos mais belos já escritos sobre o uso do solo – vem sendo intensamente divulgado pela Organização das Nações Unidas. É uma carta escrita, em 1854, pelo chefe Seatle ao presidente dos EUA, Franklin Pierre, quando este propôs comprar as terras de sua tribo, concedendo-lhe uma outra “reserva”.




“Como é que se pode comprar ou vender o céu, o calor da terra? Essa idéia nos parece estranha.

Se não possuímos o frescor do ar e o brilho da água, como é possível compra-los?

Cada pedaço desta terra é sagrado para o meu povo. Cada ramo brilhante de um pinheiro, cada punhado de areia das praias, a penumbra na floresta densa, cada clareira e inseto a zumbir são sagrados na memória e experiência de meu povo. A seiva que percorre o corpo das árvores carrega consigo as lembranças do homem vermelho.

Os mortos do homem branco esquecem sua terra de origem quando vão caminhar entre as estrelas. Nossos mortos jamais esquecem esta bela terra, pois ela é a mãe do homem vermelho. Somos parte da terra e ela faz parte de nós. As flores perfumadas são nossas irmãs; o cervo, o cavalo, a grande águia são nossos irmãos. Os picos rochosos, os sulcos úmidos nas campinas, o calor do corpo do potro e o homem – todos pertencem à mesma família.

Portanto, quando o Grande Chefe em Washington manda dizer que deseja comprar nossa terra, pede muito de nós. O Grande Chefe diz que nos reservará um lugar onde possamos viver satisfeitos. Ele será nosso pai e nós seremos seus filhos. Portanto, nós vamos considerar sua oferta de comprar nossa terra. Mas isso não será fácil. Esta terra é sagrada pára nós.

Essa água brilhante que escorre nos riachos e rios não é apenas água, mas o sangue de nossos antepassados. Se lhes vendermos a terra, vocês devem lembrar-se de que ela é sagrada, e devem ensinar às suas crianças que ela é sagra e que cada reflexo nas águas límpidas dos lagos fala de acontecimentos e lembranças da vida do meu povo. O murmúrio das águas é a voz de meus ancestrais.

Os rios são nossos irmãos, saciam nossa sede. Os rios carregam nossas canoas e alimentam nossas crianças. Se lhes vendermos nossa terra, vocês, devem lembrara e ensinar a seus filhos que os rios são nossos irmãos, e seus também. E, portanto, vocês devem dar aos rios a bondade que dedicariam a qualquer irmão.

Sabemos que o homem branco não compreende nossos costumes. Uma porção de terra, para ele, tem o mesmo significado que qualquer outra, pois é um forasteiro que vem à noite e extrai da terra quilo de que necessita. A terra não é sua irmã, mas sua inimiga, e quando ele a conquista, prossegue seu caminho. Deixa para trás os túmulos de seus antepassados e não se incomoda. Rapta da terra aquilo que seria de seus filhos e não se importa. A sepultura de seu pai e os direitos de seus filhos são esquecidos. Trata sua mãe, a terra, e seu irmão, o céu, como coisas que possam ser compradas, saqueadas, vendidas como carneiros ou enfeites coloridos. Seu apetite devorará a terra, deixando somente um deserto.

Eu não sei, nossos costumes são diferentes dos seus. A visão de suas cidades fere os olhos do homem vermelho. Talvez seja porque o homem vermelho é um selvagem e não compreenda.

Não há lugar quieto nas cidades do homem branco. Nenhum lugar onde se possa ouvir o desabrochar de folhas na primavera ou o bater das asas de um inseto. Mas talvez seja porque eu sou um selvagem e não compreendo. O ruído parece somente insultar os ouvidos. E o que resta da vida se um homem não pode ouvir o choro solitário de uma ave ou o debate dos sapos ao redor de uma lagoa à noite? Eu sou um homem vermelho e não compreendo. O índio prefere o suave murmúrio do vento encrespando a face do lago, e o próprio vento, limpo por uma chuva diurna ou perfumado pelos pinheiros.

O ar é precioso para o homem vermelho, pois todas as coisas compartilham o mesmo sopro – o animal, a árvore, o home, todos compartilham o mesmo sopro. Parece que o homem branco não sente o ar que respira. Como um homem agonizante há vários dias, é insensível ao mau cheiro. Mas se vendermos o nossa terra ao homem branco, ele deve lembrar que o ar é preciso para nós, que o ar compartilha seu espírito com toda a vida que mantém. O vento que deu ao nosso avô seu primeiro inspirar também recebe seu último suspiro. Se lhes vendermos nossa terra, vocês devem mantê-la intacta e sagrada, como um lugar onde até mesmo o homem branco possa ir saborear o vento açucarado pelas flores dos prados.

Portanto, vamos m editar sobre sua oferta de comprar nossa terra. Se decidirmos aceitar, imporei uma condição: o homem branco deve tratar os animais desta terra como seus irmãos.

Sou um selvagem e não compreendo qualquer outra forma de agir. Vi um milhar de búfalos apodrecendo na planície, abandonados pelo homem branco que os alvejou de um trem ao passar. Eu sou um selvagem e não compreendo como é que o fumegante cavalo de ferro pode ser mais importante que o búfalo, que sacrificamos somente para permanecer vivos.

O que é o homem sem os animais? Se todos os animais se fossem, o homem morreria de uma grande solidão de espírito. Pois o que ocorre com os animais, breve acontece com o homem. Há uma ligação em tudo.

Vocês devem ensinar às suas crianças que o solo a seus pés é a cinza de nossos avós. Para que respeitem a terra, digam a seus filhos que ele foi enriquecido com as vidas de nosso povo. Ensinem às suas crianças o que ensinamos às nossas, que a terra é a nossa mãe. Tudo o que acontece à terra, acontecerá aos filhos da terra. Se os homens cospem no solo, estão cuspindo em si mesmos.

Isso sabemos: a terra não pertence ao homem, o homem pertence à terra. Isto sabemos: todas as coisas estão ligadas como o sangue que une uma família. Há uma ligação em tudo.

O que ocorrer com a terra recairá sobre os filhos da terra. O homem não tramou o tecido da vida; ele é simplesmente um de seus fios. Tudo o que fizer ao tecido, fará a si mesmo.

M esmo o homem branco, cujo Deus caminha e fala com ele de amigo para amigo, não pode estar isento do destino comum. É possível que sejamos irmãos apesar de tudo. Veremos. De uma coisa estamos certos – e o homem branco poderá vir a descobrir um dia: nosso Deus é o mesmo Deus. Vocês podem pensar que O possuem, como desejam possuir nossa terra; mas não é possível. Ele é o Deus do homem e Sua compaixão é igual para o homem vermelho e para o homem branco. A terra lhe é preciosa, e feri-la é desprezar seu criado. Os brancos também passarão; talvez mais cedo que todas as outras tribos. Contaminem suas camas, e uma noite serão sufocados pelos próprios dejetos.

Mas quando de sua desaparição, vocês brilharão intensamente, iluminados pela força do Deus que os trouxe a esta terra e por alguma razão especial lhes deu o domínio sobre a terra e sobre o homem vermelho. Esse destino é um mistério para nós, pois não compreendemos que todos os búfalos sejam exterminados, os cavalos bravios seja todos domados, os recantos secretos da floresta densa impregnados do cheiro de muitos homens, e a visão dos morros obstruídos por fios que falam. Onde está o arvoredo? Desapareceu. Onde está a águia? Desapareceu. É o final da vida e o início da sobrevivência.”

sábado, 13 de julho de 2013

O verdadeiro culpado do boato sobre o Bolsa Família

Duas semanas antes da série de manifestações que pipocaram pelo país, as ruas estavam cheias de outras 900.000 pessoas também ansiosas, pessoas que também expressavam seus medos e desejos e assim questionavam o rumo do país. Muitas delas não tinham Facebook e não eram jovens; elas vinham da parcela mais pobre da população brasileira. Elas foram para as ruas motivadas por um boato sobre o fim do programa Bolsa Famíllia, e assim decidiram buscar logo o benefício mensal. Seu ato coletivo foi reconhecido não como gesto político, e sim como mero tumulto. Porém, esses, não menos do que aqueles, falavam dos limites e barreiras do momento atual

11/07/2013

Gregory Duff Morton*

de Chicago, Illinois

Em junho de 2013, o mundo ouviu as surpreendentes vozes de um movimento inesperado. Milhares de pessoas entraram nas principais avenidas do Brasil para revelar os limites e barreiras do modelo de desenvolvimento hoje vigente. Os protagonistas mais visíveis desse momento eram estudantes e jovens interligados pelo Facebook, e o movimento que eles construíram foi imediatamente recebido como um gesto político.

Duas semanas antes, as ruas estavam cheias de outras 900.000 pessoas também ansiosas, pessoas que também expressavam seus medos e desejos e assim questionavam o rumo do país. Muitas delas não tinham Facebook e não eram jovens; elas vinham da parcela mais pobre da população brasileira. Elas foram para as ruas motivadas por um boato sobre o fim do programa Bolsa Famíllia, e assim decidiram buscar logo o benefício mensal. Seu ato coletivo foi reconhecido não como gesto político, e sim como mero tumulto. Porém, esses, não menos do que aqueles, falavam dos limites e barreiras do momento atual. Eles queriam dizer alguma coisa.

E quando eu tento escutar aquilo que eles estavam falando, me lembro de minha conversa com Jaira.

“Não é algo…” Jaira me falou essa frase e parou. Por um momento, no ar seco do sertão baiano, houve silêncio. Finalmente ela achou a palavra certa e completou: “...confiável.”

Não é algo confiável. Era 2012, e Jaira estava tentado me explicar as realidades do Bolsa Família. Sou estudante de antropologia, estrangeiro. Quando comecei a morar no povoado rural onde Jaira também mora, as mulheres do lugar queriam ensinar-me alguma coisa. Elas queriam indicar, antes mesmo de o fato acontecer, quem seria o verdadeiro culpado do boato sobre o Bolsa Família em maio de 2013. O culpado não seria um político nem um gerente de banco.

Seria outra coisa.

Seria a estrutura de um programa social que, todos os dias, com mil pequenas humilhações, comunica simbolicamente para seus beneficiários: Bolsa Família não é algo confiável. Você não pode contar com esse dinheiro.

É importante dizer, em um primeiro momento, que o Bolsa Família transformou a vida de Jaira. Na zona rural, percebe-se fisicamente a diferença entre os jovens que nasceram antes do Bolsa Família e os que nasceram depois.

A melhora na nutrição (entre tantos outros fatores) é nítida. Minha pesquisa demonstrou que o dinheiro, na grande maioria das vezes, é usado para gastos com comida, roupas, e alojamento. Ou seja, esse recurso tem um papel fundamental no progresso de 13,8 milhões de famílias, o que representa um êxito humano de relevância mundial. O programa brasileiro é a maior programa de transferência condicionada de renda no mundo, e o mundo está de olho; foi o Bolsa Família, justamente, que me trouxe até Brasil para fazer pesquisa.

Mas para podermos valorizar esse sucesso, precisamos reconhecê-lo como um sucesso ainda incompleto. Seus limites tornaram-se evidentes no dia 18 de maio, quando correu um boato segundo o qual o programa seria cancelado. Cerca de 900 mil beneficiários em 13 estados se apressaram para chegar até os pontos de pagamento, provocando tumultos, pânico, esgotamento de dinheiro nos caixas e, pouco tempo depois, uma polêmica partidária sobre a origem do problema. Segundo informações da Caixa Econômica Federal, no 17 de maio, o banco pulou o calendário normal, no qual o pagamento é feito de forma escalonada, e liberou o recurso mensal de todos os beneficiários no país ao mesmo tempo.

Eis o paradoxo. Como é que um aumento na disponibilidade do dinheiro, um pagamento antecipado, podia transformar-se em um poderoso boato sobre ocancelamento do programa?

A resposta a essa pergunta revela uma realidade bem importante sobre o Bolsa Família. Foram milhares de pessoas que passaram o boato de vizinho para vizinho, em quintais e roças, por meio de ligações de orelhão e conversas de igreja, e essas pessoas, mesmo comunicando uma informação incorreta, davam voz a uma verdade. Elas demonstravam o que Antônio Gramsci chamava de “bom senso,” ou seja, a capacidade das massas para expressar uma verdade social em uma forma não ortodoxa. E a verdade é essa: Bolsa Família é um programa social, e não um direito.

Essa verdade pode ser ouvida no que me disseram quatro vizinhas de Jaira, em quatro conversas distintas, no ano de 2012:

“Bolsa Família não é uma coisa segura que-- hoje você tem, amanhã-- já não sabe mais se você tem.”

“O dia que cortar, vai ser geral […] Esse dinheiro não é para toda a vida.”

“Acho que tem que estar preparado, que não é uma coisa que vai ser pra sempre [...] e você nem sabe se você vai ficar recebendo a vida toda […] o governo corta.”

“Receber até o dia que eles querem […] que ninguém sabe se é para toda a vida.”

A instabilidade do Bolsa Família é um fato vivido por essas benificiárias rurais. Elas a percebem logo no cadastramento. O acesso ao benefício não é garantido, mesmo para quem se encaixa nos critérios do programa, e as vizinhas de Jaira costumam esperar muito para receber o primeiro pagamento— três meses pelo menos e, em algumas famílias que conheço, até quatro anos.

(Nas frias palavras do site do MDS, “o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome seleciona, de forma automatizada, as famílias que serão incluídas no PBF. No entanto, o cadastramento não implica a entrada imediata das famílias no Programa e o recebimento do benefício.”)

No povoado onde mora Jaira, quando comecei minha pesquisa no final de 2011, quase todo mundo já havia feito várias viagens à prefeitura para solicitar o Bolsa Família, mas 20,5% dos domicílios qualificados não recebia nada.

Mesmo o fato de receber o dinheiro não traz segurança. Muitas das vizinhas de Jaira já tiveram o recurso bloqueado, geralmente por causa de transtornos burocráticos e às vezes sem explicação, durante três ou quatro ou até onze meses.

Esses bloqueios provocavam crises na alimentação das crianças, mas, em um lugar onde a passagem de ônibus para chegar até a prefeitura custa o equivalente ao que um trabalhador ganha em um dia de trabalho no campo, foi difícil resolvê-los. Quando os beneficiários conseguiam desbloquear o Bolsa Família, não recebiam pagamento atrasado.

Os beneficiários entendem claramente o recado que mandam os gestores do programa. Mireya Súarez e Marlene Libardoni, em sua pesquisa sobre o Bolsa Família, ouviram esse recado de um gestor municipal:

“A gente não sabe até quando vai durar, que é um programa que teve início e que pode ter fim. Portanto, as famílias têm que se preparar para se desligar disso.”

Esses gestores, entretanto, só comunicam uma incerteza que tem sua origem na estrutura política do Bolsa Família. As listas de espera, os bloqueios, a falta de segurança sobre o futuro: tudo vem da raiz do programa.

Tudo isso acontece porque o Bolsa Família não é um direito — é um programa social. A decisão de estruturar o Bolsa Família como programa opcional do governo – ou seja, como intervenção pontual e impermanente – foi uma determinação política.

O Senador Suplicy defendeu uma visão alternativa, na qual o Bolsa Família seria o primeiro passo na criação de uma renda básica universal, mas seus esforços infatigáveis tiveram como único resultado uma lei de valor simbólico e hoje ignorada.

O Bolsa Família, na sua condição de programa social, quebrou com a trajetória do Estado de Bem-estar brasileiro, uma trajetória marcada pelo aumento paulatino da parcela da população que gozava do direito a uma transferência de renda: os direitos trabalhistas da época de Vargas, a expansão de aposentadorias para lavradores rurais em 1963, e, como fruto da redemocratização, a criação em 1993 do Benefício de Prestação Continuada para pessoas idosas ou com deficiências.

Não foi por acaso que a Lei Orgânica de Assistência Social falava, em 1993, na “garantia dos direitos sociais,” quando, dez anos mais tarde, o decreto criando o Bolsa Família visou “estimular a emancipação sustentada das famílias que vivem em situação de pobreza e extrema pobreza.”

Entre “garantir” e “estimular,” entre 1993 e 2004, vive-se toda uma transformação no Estado. Flexibilidade, investimento, e auto- empreendedorismo viram as palavras-chaves, e a estrutura do Bolsa Família demonstra o quanto nem Lula nem Dilma conseguiram romper com esse fundamento neoliberal. No mundo da permanente impermanência, a função do governo é atingir metas, e não garantir direitos.

Nos olhos de quem recebe o Bolsa Família, se o dinheiro não é um direito, o que é? Segundo as palavras de um vizinho de Jaira, é “um grande privilégio.” Ou seja, o benefício é uma dádiva com a qual não se pode contar.

É claro que não são todos os beneficiários enxergam o programa assim. Mas a lógica do “privilégio” vem sendo reforçado com as ondas sucessivas de aumentos inseguros e às vezes transitórias. Enquanto eu morava no povoado, ouvimos falar do Bolsa Verde, do Brasil Carinhoso, do Bolsa Nutriz e Bolsa Gestante, e do Bolsa Estiagem, só alguns dos quais chegaram e só para algumas pessoas, geralmente sem explicação e sempre sem garantia.

Entende-se, portanto, por que alguns beneficiários interpretaram a chegada antecipada do dinheiro, no dia 17 de maio, como um “presente de Dilma” para o Dia das Mães. Entende-se também, em um movimento mais complexo, o raciocínio que levou os beneficiários a concluir que esse presente sinalava também o fim do programa.

Podemos lembrar aqui os pensamentos do antropólogo Marcel Mauss, grande teórico do fenômeno da dádiva. A dádiva, para Mauss, é um fenômeno aparentemente voluntário, mutável, e nunca sujeito a uma contabilidade exata. Nas variadas culturas humanas, a dádiva nunca pertence totalmente ao seu receptor; uma parte sempre procura voltar ao doador. O ato de doar pede mas não garante um retorno, e o retorno pede outro dom, prolongando assim o vínculo..

Como perfeitos maussianos, os beneficiários tentam retribuir o dom do Bolsa Família com o contra-dom das condicionalidades (freqüência escolar e vacinas), mas, frente aos bloqueios burocráticos e à incerteza sobre o futuro do programa, o contra-dom não consegue regularizar totalmente o fluxo do dinheiro. Essa dádiva é instável.

O próprio Mauss considerava que os benefícios sociais eram dádivas, e, escrevendo no ano 1925, ele já destacou a insuficiência de benefícios instáveis que o Estado não garante. Pelo visto, muitos beneficiários do Bolsa Família concordam com ele. Em 2012, já corriam boatos, no sertão baiano, que tratavam do final do Bolsa Família, como futuro de um programa sem garantia. Parecia claro que uma dádiva como o Bolsa Família não pudesse ficar de maneira permanente nas mãos dos pobres.

E em maio de 2013, nos olhos de muitos beneficiários, parecia que essa profecia estava se tornando realidade. Quando de repente o valor do dom aumenta, Mauss nos ensina, aumenta também a incapacidade do receptor para retribui-lo. Por isso, um incremento no dom implica uma certa agressividade, um lance que rompe com o ritmo de dom e contra-dom, e que visa impossibilitar o contra-dom e assim terminar o ciclo das trocas. O gesto de entregar o Bolsa Família antes da hora seria também o gesto de terminar o processo.

Corria o boato no 18 de maio, entre as pessoas que se apressavam para sacar seus benefícios, que o governo precisava de dinheiro para acolher a visita do papa ou a Copa das Confederações. Janúbia Silva Alves, de 29 anos, explicou a lógica em uma entrevista condedida à Folha de S. Paulo (19/5):

"Estão avisando na minha comunidade que o governo vai pagar os próximos três meses até o final do domingo e cancelaria tudo. A minha vizinha, que já pegou o dinheiro dela, disse que o governo quer economizar dinheiro para conseguir fazer as festas para o papa.”

Os argumentos sobre o papa e a Copa exemplificam o bom senso. Um benefício não garantido, um mero programa social, sempre compete com as prioridades espetaculares do estado desenvolvimentista. E, como no potlatch da sociedade Kwakiutl, o Bolsa Família terminaria, disse o boato, com grandes festas marcadas por um dom extraordinário -- 3 meses de benefício! -- e impossível de retribuir.

Vale a pena pensar, além do pânico de maio, nos efeitos negativos produzidos pela dinâmica de dádiva instável que até hoje caracterizou a política do governo para com Bolsa Família. Simbolicamente e juridicamente, o dinheiro nunca pertence totalmente ao beneficiário. É um dinheiro que pode sumir a qualquer momento. A “cidadania” que ele gera será, portanto, uma cidadania também incompleta. Os vizinhos de Jaira não conseguem fazer grandes decisões – mudança de casa, início de pequeno negócio, empréstimo a longo prazo – fundamentadas na segurança de que o Bolsa Família vai permanecer. Pior ainda, o dom instável reforça o aspeto de dominação na relação beneficiário-Estado, pois a arbitrariedade que acompanha esse benefício evidencia a incapacidade do sujeito para influir nas decisões que mais afetam sua vida.

Essa desigualdade vem complementando outra: a hierarquia entre “trabalho” (atividade masculina, segundo o estereótipo) e os esforços dentro de casa. Apresentando o Bolsa Família como investimento pontual no capital humano, como auxílio para consumos, como dom instável, os arquitetos do programa conseguem separá-lo do salário, o dinheiro clássico do homem. Tal simbolismo vem escondendo uma visão alternativa: o Bolsa Família poderia ser visto como o salário para o trabalho doméstico. Nesse caso, estariam sido valorizados os trabalhos mais negligenciados, porém mais essenciais para a reprodução da sociedade. O Bolsa Família seria entendido, assim, como obrigação do Estado, como remuneração que o receptor ganha e, com justiça, pode exigir. Uma fonte de verdadeira riqueza humana seria reconhecida.

O Bolsa Família mudou o Brasil, e é hora de mudar o conceito que temos do Bolsa Família. Em 18 e 19 de maio, uns poucos dias antes do grande movimento dos jovens, milhares de beneficiários passaram um boato de porta em porta, de janela em janela, e assim deixaram sua condição de objetos de planejamento social para se tornarem, por um instante, protagonistas no discurso público. Com vozes eloquentes, eles revelaram as instabilidades e insuficiências do modelo atual e a urgência de uma visão melhor.

* Gregory Duff Morton é lecturer em Antropologia e Serviço Social na University of Chicago, mestre em Antropologia e mestre em Serviço Social pela University of Chicago, e doutorando em Antropologia e Serviço Social na mesma universidade.

Texto replicado : BRASIL DE FATO