segunda-feira, 9 de abril de 2018

Angela Davis e a abolição que não houve

por Pedro Alexandre Sanches — publicado 08/04/2018 00h30, última modificação 06/04/2018 18h53

A filósofa norte-americana ficou 47 anos inédita no Brasil por afirmar que a escravidão nunca acabou de fato

Angela Davis, a escritora pop foi censurada no Brasil
Muito antes que os Estados Unidos da América começassem a sonhar em construir um muro que os separasse da América Latina, um muro de concreto armado nos separou da estadunidense Angela Davis. Embora propenso a consumir acriticamente tudo que a indústria cultural de lá produz, o Brasil demorou 47 anos para traduzir e publicar qualquer um dos livros da filósofa, professora de estudos feministas, militante antirracista e ativista pelos direitos civis, hoje com 74 anos de idade e em plena produtividade intelectual.

O dique rompeu-se em 2016, quando a editora Boitempo transpôs para o português Mulheres, Raça e Classe, editado na terra natal em 1981. Em 2017, veio Mulheres, Cultura e Política (1990), um compilado do pensamento oitentista de Angela. O novo A Liberdade É uma Luta Constante, de 2015, chega agora pela mesma Boitempo e marca o momento mais importante da descoberta brasileira de uma mulher que foi militante do partido Panteras Negras (fundado em 1966), presa política estadunidense (entre 1971 e 1972) e duas vezes candidata a vice-presidenta da República pelo Partido Comunista deles (em 1980 e 1984).
A tradução do pensamento mais contemporâneo de Angela Davis para o Brasil de 2018 é crucial por dois motivos principais, entrelaçados entre si. Em primeiro lugar, flagra uma versão de Estados Unidos mais semelhante que divergente do Brasil que conhecemos desde sempre – Angela sustenta, por exemplo, que a escravidão jamais foi abolida no “país da liberdade” e que as prisões são o sucedâneo “moderno” do modelo de escravização que os Estados Unidos supostamente aboliram nos anos 1860 (e o Brasil, em 1888).

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Sob essa perspectiva, o livro de 2015 explica (sem citá-la explicitamente) a vida e a morte de Marielle Franco, que foi tão pouco percebida pelo Brasil quanto Angela Davis, pelo menos até a data da execução da vereadora e ativista carioca, em 14 de março último. Em comum, as duas guardam, entre outras muitas características, o fato de serem mulheres e negras.

Em segundo lugar, a atualidade desconcertante de A Liberdade É uma Luta Constante deixa uma interrogação urgente no ar: por que os Estados Unidos, tão céleres em traduzir o processo político brasileiro a brasileiros em linguajar Netflix, esconderam por tantas décadas a existência de Angela Davis? Por que classificaram aquela sua cidadã como “terrorista”, confiscaram seus títulos acadêmicos e incluíram-na entre os dez estadunidenses mais procurados durante o governo Richard Nixon?

Ou, no sentido reverso, por que a indústria cultural brasileira, sempre tão ávida pela trash culture estadunidense, manteve no final da fila a filósofa negra mais pop da geração hippie (a ponto de motivar estampas de camiseta e movimentos do tipo “Free Angela Davis”)? Os motivos estão todos inscritos na obra viva da pensadora.

“A favela é a nova senzala”, cantou, em 1986, o compositor popular carioca que décadas depois se filiaria às hostes reacionárias. Era falácia. A favela, mesmo em tempos de “intervenção militar constitucional”, guarda mais as sementes de um novo quilombo.

A nova senzala, segundo o pensamento de Angela Davis, é o que ela chama de “complexo industrial-prisional”, que escraviza preferencialmente cidadãos de origem africana, indígena e de outras minorias étnicas, além de imigrantes de todo o planeta. Há mais de 2,5 milhões de encarcerados nos Estados Unidos e mais de 8 milhões no mundo todo, denuncia a autora, que faz daquilo que denomina “abolicionismo prisional” a bandeira central de A Liberdade É uma Luta Constante.

“Se quisermos imaginar a possibilidade de uma sociedade sem racismo, tem de ser uma sociedade sem prisões. Sem o tipo de policiamento que vivenciamos hoje”, afirma, apontando que o aprisionamento de corpos negros é uma estratégia adaptada de segregação racial.

“Ainda vivemos sob o famoso mito de que (Abraham) Lincoln libertou a população escravizada, mito que continua a ser perpetuado pela cultura popular, até mesmo pelo filme Lincoln. Ele não libertou a população escravizada”, escreve, como talvez escrevesse sobre a princesa Isabel, se fosse brasileira. “Não sabemos falar sobre o genocídio infligido aos povos indígenas.

Protestos a favor da filósofa (Foto: Wikimedia)
Não sabemos falar sobre escravidão”, acrescenta, em referência não ao Brasil (ou a qualquer país formado pelo que chama, com tristeza, de “populações excedentes, descartáveis”), mas da “pátria da liberdade”. “Não podemos entender por que (a pena de morte) continua a existir nos Estados Unidos da forma como existe sem uma análise sobre a escravidão”, sintetiza, em combate franco contra a privatização e a apropriação capitalista das questões de segurança, educação e saúde.

Se noutras obras Angela se preocupou com a discriminação e a violência preferencial da sociedade contra mulheres negras, hoje ela se abre a transversalidades que tentam explicar como cada partícula dos nossos problemas se conforma num todo.

A chamada “intersecionalidade” advogada por ela busca combater, em bloco, a “dinâmica de violência, supremacia branca, patriarcado, poder do Estado, mercados capitalistas e políticas imperiais” – não é à toa que o país em que nasceu (ao Sul) procure mantê-la apartada de seus semelhantes planeta afora. Por conta disso, grande parte da energia de A Liberdade É uma Luta Constante é dissipada no ativismo pelo abolicionismo prisional também na Palestina, “uma luta talvez tão improvável como parecia ser abolir a escravidão”.

Angela lembra que os Estados Unidos Racistas e Imperialistas da América (como nomeia o próprio país a certa altura) subsidiam 8 milhões de dólares diários a Israelpara promover o aprisionamento de palestinos, e que a G45, a terceira maior corporação privada do mundo, administra prisões privatizadas, promove repressão a presos políticos em Israel e fornece segurança privada a estrelas do rock e do esporte.

Para ela, a discriminação contra muçulmanos, amplificada com a “guerra contra o terror” pós-11 de setembro de 2001, “talvez seja a forma mais virulenta de racismo atualmente”. É aberto o libelo de Angela contra o apartheid israelense (que compreende como equivalente ao apartheid sul-africano vigente oficialmente entre 1948 e 1994) e pelo movimento BDS (Boicote, Desinvestimento e Sanções) contra o governo israelense. Ao protestar contra “o monopólio da violência cobrado dos oprimidos”, Angela refere-se, num só golpe, às estratégias diárias pelas quais criminalizamos palestinos pelo apartheid israelense, homens-bomba pelas guerras no Oriente Médio, mulheres pelo estupro, homossexuais pelos crimes homofóbicos, Angela Davis pela luta antirracista, Marielle Franco pelo próprio assassinato.

“O espaço da cadeia ou da prisão não é apenas material e objetivo, mas também ideológico e psíquico. Internalizamos essa noção de um lugar onde colocar as pessoas más”, ensina, num fio lógico que, no limite, expõe as escaladas fascistas como o desejo de aprisionar corpos e mentes, inclusive os dos próprios fascistas.

É nessa linha que Angela decifra os EUA pós-abolição (ou o Brasil pós-conquistas sociais do início do século XXI). Para ela, os avanços civilizatórios ao final da Guerra Civil(1861-1865) foram combatidos com violência capaz de atrasar as lutas pela liberdade em um século. Quando puderam voltar, nos anos 1960, tiveram de se confinar a movimentos pelos direitos civis, para ela muito mais restritos que a luta pela liberdade humana com L maiúsculo.

Ao apregoar a interseção entre as lutas contra o racismo, a misoginia e a homofobia (ou, de modo ampliado, contra a islamofobia e o ataque genocida a diversos grupos humanos), Angela Davis define o individualismo capitalista como um inimigo a ser neutralizado. A ideia-força é de que um único indivíduo discriminado representa a discriminação de todo o coletivo humano.

Assim, são irmãs gêmeas a execução brasileira de Marielle Franco, a morte do símbolo feminino anti-apartheid Winnie Mandela (aos 81 anos, em 2 de abril) e a vitalidade resistente de Angela Davis e das muitas angelas-winnies-marielles que vêm por aí.

Texto original: CARTA CAPITAL

Um comentário:

  1. A escravidão nunca vai acabar enquanto os negros não pararem se se vitimizar. Como aquela juíza que exigiu salário maior, como as cotas racias nas universidades. Que fazem as pesaoas olharem os negros como deficientes mentais. Incapazes de concorrerem com os outros esrudantes.
    Estados Unidos prega muito o orgulho negro até hoje. Reaultado? Desprezo mútuo entre brancos e negros tão forte, que raramente se casam entre si. Aqui no Brasil parece que querem fazer o mesmo.

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