Dario Pignotti @DarioPignotti
Em sua condição de presidenta reeleita, Dilma Rousseff abordou pela primeira vez, e com argumentos substanciais, a necessidade de o Brasil debater e eventualmente sancionar um marco jurídico sobre os oligopólios que dominam a produção, circulação e consumo de notícias (privilégio que lhes permite pautar estratégias de desinformação em escala industrial).
Dilma citou as leis que foram aplicadas no Reino Unido contra crimes cometidos por um jornal do conglomerado de propriedade de Rupert Murdoch (uma espécie de Roberto Marinho nascido na Austrália e naturalizado britânico).
Falando para repórteres do jornal O Globo e de outras mídias privadas, a presidenta se referiu à necessidade de superar essa anomalia tipicamente brasileira, a "propriedade cruzada" de mídias eletrônicas e gráficas.
"Oligopólio e monopólio. Por que qualquer setor tem regulações e a mídia não pode ter?", questionou a presidenta diante dos jornalistas e deixou aberta uma potencial discussão sobre como vão se inserir as empresas de telecomunicação.
"Não só a propriedade cruzada. Tem inclusive um desafio, que é saber como fica a questão na área das mídias eletrônicas. O que é livre mercado total? Tenderá a ser a rede social, eu acho".
A presidenta que, em 2013, suspendeu uma visita de Estado a Washington em repúdio à espionagem perpetrada pela agência norte-americana NSA anunciou que impulsionará "um amplo debate a exemplo do que aconteceu com o marco civil da internet. Eu pretendo abrir um processo de discussão a partir do primeiro ou segundo trimestre do ano que vem".
Essas palavras revelam uma discussão política de fundo: iniciar a transição rumo à democracia midiática, o que seguramente vai alimentar a belicosidade do grupo Globo, o maior multimídia sul-americano, e de outras empresas defensoras do atual regime, que pode ser definido como "alegal", já que o Brasil é um dos poucos países onde não há legislação sobre propriedade cruzada.
Acontece que no Brasil impera um regime de exclusão social do espaço público que é pouco visto no resto do mundo, incluindo as potências ocidentais e países latino-americanos cujos governos compreenderam que para consolidar a democracia, em muitos casos recentes, era imprescindível alterar as condições de produção do campo informativo, o que implica desmontar estruturas concentradas e incorporar novos atores através de veículos públicos com generoso financiamento.
E para avançar na matéria, é básico contar com um marco jurídico que regule o sistema. Sem lei, impera a barbárie do mercado jornalístico.
Outra diferença: Enquanto no Brasil o sistema estatal e público é pouco competitivo com as empresas privadas, em outros paises como o Reino Unido e Italia, existem poderosas empresas públicas como BBC e RAI com real capacidade de disputa frente a grupos tentaculares, oligopólicos, como o controlado por Murdoch ou o multimídia de Silvio Berlusconi.
Dilma cumpre
Durante a campanha encerrada com a vitória de 26 de outubro, Dilma havia dado sinais de sua intenção de abordar um tema espinhoso para o qual deu pouca atenção nos primeiros quatro anos de seu mandato. Por sua vez, o candidato do setor conservador Aécio Neves se posicionou contra qualquer regulamentação, assumindo como seu o discurso das empresas e da Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e TV (Abert). Rechaçou toda ameaça à liberdade de expressão como se esta pudesse ser limitada por um regime de propriedade menos concentrado.
Antes do primeiro turno de 5 de outubro, a candidata do PT concedeu entrevista a vários blogueiros que não se sujeitam à censura do mercado. Foi a primeira vez que a presidenta recebeu a imprensa "independente", no sentido cabal do termo, na residência oficial da Alvorada, reconhecendo seu status político e institucional.
"Uma coisa não tem nada a ver com a outra [regulação econômica e controle de conteúdo]. Regular conteúdo é de país ditatorial. Na regulação econômica vamos impedir que relações oligopólicas se estabeleçam e se instalem. É óbvio que nada tem de bolivariano nisso", disse em 25 de setembro, quando também prometeu que, ao ser eleita, retomaria o assunto.
Semanas mais tarde, poucos dias antes do segundo turno, Dilma e o PT denunciaram as manobras perpetradas pela Veja e adiantaram a intenção de levar o caso à justiça por considerar que a revista da Editora Abril cometera ações criminosas.
Promessas cumpridas
A novidade surgida da entrevista desta quinta-feira concedida ao Globo, Folha de S.Paulo, Estado de S. Paulo e Valor Econômico é que dois meses antes de assumir seu segundo mandato, a presidenta ratificou sua promessa de campanha de revisar o status quo informativo.
Detalhe: a chefe de Estado não tocou no assunto tangencialmente, ou por compromisso em resposta a uma pergunta, mas demonstrou real interesse em assumir o assunto durante alguns minutos, como mostram as mais de 80 linhas textuais publicadas hoje na página 4 do jornal O Globo.
Claro que as grandes mídias matutinas evitaram colocar em destaque a decisão de impulsionar a democracia comunicacional, assunto que, na opinião deste articulista, foi a principal notícia da entrevista. Ao contrário, os jornais hegemônicos preferiram, no geral, destacar que Dilma caminharia rumo a um inevitável ajuste neoliberal.
Com títulos surgidos do que podemos chamar de "pensamento único jornalístico", O Globo, Estado de S. Paulo e Folha de S.Paulo publicaram, respectivamente, "Dilma diz que vai a controlar gastos e controlar a inflação", "Dilma diz que fará 'dever de casa' contra inflação" e "Dilma sugere contenção de gasto e cerco à inflação". Interessante exemplo de como a propriedade concentrada deriva em homogeneidade ideológica.
Outro enfoque ao qual foi dada a devida importância foi aquele em que Dilma cita a "dura" legislação inglesa contra as irregularidades jornalísticas cometidas pelo tablóide News of the World, forçado a encerrar suas atividades após o escândalo de escutas ilegais em 2011.
Agora, apesar de os jornais dominantes não terem feito isso, é possível aprofundar e interpretar essa declaração da presidenta que governará o Brasil até 31 de dezembro de 2018.
Nesse ponto se torna inevitável estabelecer um paralelo entre os abusos do britânico News of the World e os excessos cometidos pela Veja para sabotar a quarta vitória consecutiva do PT.
Como no Brasil, por enquanto, há um vazio jurídico absoluto, está garantida a impunidade dos patrões e dos editores da publicação semanal da família Civita.
Do contrário, se o Brasil tivesse alguma lei que impusesse limites à realidade hobbessiana da mídia, é possível que os responsáveis pela Veja fossem processados, como foi Rebeca Brooks, mão direita do multimilionário Murdoch, junto de Andy Coulson, ex-porta-voz do premiê britânico David Cameron.
___________Dilma citou as leis que foram aplicadas no Reino Unido contra crimes cometidos por um jornal do conglomerado de propriedade de Rupert Murdoch (uma espécie de Roberto Marinho nascido na Austrália e naturalizado britânico).
Falando para repórteres do jornal O Globo e de outras mídias privadas, a presidenta se referiu à necessidade de superar essa anomalia tipicamente brasileira, a "propriedade cruzada" de mídias eletrônicas e gráficas.
"Oligopólio e monopólio. Por que qualquer setor tem regulações e a mídia não pode ter?", questionou a presidenta diante dos jornalistas e deixou aberta uma potencial discussão sobre como vão se inserir as empresas de telecomunicação.
"Não só a propriedade cruzada. Tem inclusive um desafio, que é saber como fica a questão na área das mídias eletrônicas. O que é livre mercado total? Tenderá a ser a rede social, eu acho".
A presidenta que, em 2013, suspendeu uma visita de Estado a Washington em repúdio à espionagem perpetrada pela agência norte-americana NSA anunciou que impulsionará "um amplo debate a exemplo do que aconteceu com o marco civil da internet. Eu pretendo abrir um processo de discussão a partir do primeiro ou segundo trimestre do ano que vem".
Essas palavras revelam uma discussão política de fundo: iniciar a transição rumo à democracia midiática, o que seguramente vai alimentar a belicosidade do grupo Globo, o maior multimídia sul-americano, e de outras empresas defensoras do atual regime, que pode ser definido como "alegal", já que o Brasil é um dos poucos países onde não há legislação sobre propriedade cruzada.
Acontece que no Brasil impera um regime de exclusão social do espaço público que é pouco visto no resto do mundo, incluindo as potências ocidentais e países latino-americanos cujos governos compreenderam que para consolidar a democracia, em muitos casos recentes, era imprescindível alterar as condições de produção do campo informativo, o que implica desmontar estruturas concentradas e incorporar novos atores através de veículos públicos com generoso financiamento.
E para avançar na matéria, é básico contar com um marco jurídico que regule o sistema. Sem lei, impera a barbárie do mercado jornalístico.
Outra diferença: Enquanto no Brasil o sistema estatal e público é pouco competitivo com as empresas privadas, em outros paises como o Reino Unido e Italia, existem poderosas empresas públicas como BBC e RAI com real capacidade de disputa frente a grupos tentaculares, oligopólicos, como o controlado por Murdoch ou o multimídia de Silvio Berlusconi.
Dilma cumpre
Durante a campanha encerrada com a vitória de 26 de outubro, Dilma havia dado sinais de sua intenção de abordar um tema espinhoso para o qual deu pouca atenção nos primeiros quatro anos de seu mandato. Por sua vez, o candidato do setor conservador Aécio Neves se posicionou contra qualquer regulamentação, assumindo como seu o discurso das empresas e da Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e TV (Abert). Rechaçou toda ameaça à liberdade de expressão como se esta pudesse ser limitada por um regime de propriedade menos concentrado.
Antes do primeiro turno de 5 de outubro, a candidata do PT concedeu entrevista a vários blogueiros que não se sujeitam à censura do mercado. Foi a primeira vez que a presidenta recebeu a imprensa "independente", no sentido cabal do termo, na residência oficial da Alvorada, reconhecendo seu status político e institucional.
"Uma coisa não tem nada a ver com a outra [regulação econômica e controle de conteúdo]. Regular conteúdo é de país ditatorial. Na regulação econômica vamos impedir que relações oligopólicas se estabeleçam e se instalem. É óbvio que nada tem de bolivariano nisso", disse em 25 de setembro, quando também prometeu que, ao ser eleita, retomaria o assunto.
Semanas mais tarde, poucos dias antes do segundo turno, Dilma e o PT denunciaram as manobras perpetradas pela Veja e adiantaram a intenção de levar o caso à justiça por considerar que a revista da Editora Abril cometera ações criminosas.
Promessas cumpridas
A novidade surgida da entrevista desta quinta-feira concedida ao Globo, Folha de S.Paulo, Estado de S. Paulo e Valor Econômico é que dois meses antes de assumir seu segundo mandato, a presidenta ratificou sua promessa de campanha de revisar o status quo informativo.
Detalhe: a chefe de Estado não tocou no assunto tangencialmente, ou por compromisso em resposta a uma pergunta, mas demonstrou real interesse em assumir o assunto durante alguns minutos, como mostram as mais de 80 linhas textuais publicadas hoje na página 4 do jornal O Globo.
Claro que as grandes mídias matutinas evitaram colocar em destaque a decisão de impulsionar a democracia comunicacional, assunto que, na opinião deste articulista, foi a principal notícia da entrevista. Ao contrário, os jornais hegemônicos preferiram, no geral, destacar que Dilma caminharia rumo a um inevitável ajuste neoliberal.
Com títulos surgidos do que podemos chamar de "pensamento único jornalístico", O Globo, Estado de S. Paulo e Folha de S.Paulo publicaram, respectivamente, "Dilma diz que vai a controlar gastos e controlar a inflação", "Dilma diz que fará 'dever de casa' contra inflação" e "Dilma sugere contenção de gasto e cerco à inflação". Interessante exemplo de como a propriedade concentrada deriva em homogeneidade ideológica.
Outro enfoque ao qual foi dada a devida importância foi aquele em que Dilma cita a "dura" legislação inglesa contra as irregularidades jornalísticas cometidas pelo tablóide News of the World, forçado a encerrar suas atividades após o escândalo de escutas ilegais em 2011.
Agora, apesar de os jornais dominantes não terem feito isso, é possível aprofundar e interpretar essa declaração da presidenta que governará o Brasil até 31 de dezembro de 2018.
Nesse ponto se torna inevitável estabelecer um paralelo entre os abusos do britânico News of the World e os excessos cometidos pela Veja para sabotar a quarta vitória consecutiva do PT.
Como no Brasil, por enquanto, há um vazio jurídico absoluto, está garantida a impunidade dos patrões e dos editores da publicação semanal da família Civita.
Do contrário, se o Brasil tivesse alguma lei que impusesse limites à realidade hobbessiana da mídia, é possível que os responsáveis pela Veja fossem processados, como foi Rebeca Brooks, mão direita do multimilionário Murdoch, junto de Andy Coulson, ex-porta-voz do premiê britânico David Cameron.
Dario Pignotti é repórter do diário argentino Página 12.
A tradução é de Daniella Cambaúva.
Créditos da foto: Roberto Stuckert Filho/PR
Texto original: CARTA MAIOR
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