segunda-feira, 8 de novembro de 2021

A temerária ostentação da nova classe

 O 0,1% camufla sua fortuna em paraísos fiscais, mas gosta, perigosamente, de exibir. Mansões, festas, estátuas e Forbes. Há sinais de que a apatia pode virar ira. Mas quais políticas podem transformá-la em redistribuição profunda de riquezas?

Publicado 04/11/2021 às 20:33 - Atualizado 04/11/2021 às 20:45




Por John FefferForeign Policy In Focus | Tradução: Victor Costa

Os ricos sempre alardearam sua riqueza. Raramente gostam apenas do sucesso financeiro, mas também querem ser notados.

Eles constroem casas enormes para todos ficarem boquiabertos. Eles dão festas luxuosas. Eles encomendam pinturas, estátuas, biografias. Eles doam para instituições para que seus nomes possam ser lembrados para sempre.

Ao mesmo tempo, os ricos se retiram para villas fechadas, viajam em seus próprios jatos particulares e compram seus próprios Picassos para não terem que se misturar com os hoi polloi [ralé em grego] dos museus. Os ricos querem que saibamos sobre sua riqueza, mas também querem ser deixados em paz para desfrutá-la. Eles jogam um jogo de esconde-esconde com o público. “Agora você vê minha riqueza, depois você não a vê mais”.

Em nossa era globalizada, esse esconde-esconde se tornou um grande empreendimento. Grandes fortunas são geradas por operações multinacionais e fluxos financeiros transnacionais. Os lucros, por sua vez, são protegidos por um sistema complexo de contas bancárias secretas e paraísos fiscais. Pode ser que os ricos deem seu dinheiro, ocasionalmente, aos governos. Mas será o mínimo possível. Suas doações para instituições de caridade privadas costumam ser apenas outra forma de furtar o público. Os paraísos fiscais globais, por sua vez, são realmente um grande roubo.

As informações recém-vazadas no caso Pandora Papers, um conjunto de quase 12 milhões de documentos, trazem alguma luz sobre os mecanismos pelos quais os ricos gastam suas fortunas. Um exemplo chama a atenção: Tony Blair.

O ex-primeiro-ministro britânico e sua esposa, a advogada Cherie, compraram uma casa multimilionária em Londres para ser seu escritório, mas fizeram de forma a evitar o pagamento do imposto sobre a venda. Num truque financeiro com offshore, eles deixaram de pagar várias centenas de milhares de dólares ao próprio governo que Blair uma vez presidiu.

A manobra, que foi perfeitamente legal, chama a atenção por dois motivos.

Primeiramente, o próprio Blair inicialmente protestou contra as evasões fiscais dessa natureza. “Trustes offshore obtêm benefícios fiscais enquanto os proprietários de casas pagam o IVA [Imposto Sobre Valor Agregado] sobre os prêmios de seguro”, disse, quando era líder do Partido Trabalhista. “Vamos criar um sistema tributário justo relacionado à capacidade de pagamento.”

Em segundo lugar, Blair celebrou uma “terceira via” que supostamente era uma acomodação entre o socialismo e o capitalismo. Quando se tratava de mercados globais, Blair queria “remover os encargos regulatórios e desatar as mãos das empresas”, como ele disse em um célebre discurso em 1999.

Não é nenhuma surpresa, então, que ele tenha aproveitado os próprios mecanismos aos quais ele inicialmente se opôs e, posteriormente, facilitou por meio da desregulamentação.

Blair não está sozinho em seu oportunismo. Os Pandora Papers citam muitos políticos que fizeram campanha com propostas anticorrupção e que agora estão sendo atingidos por seus próprios petardos.

O bilionário primeiro-ministro tcheco Andrej Babiš, por exemplo, construiu seu capital político com base nas promessas de enfrentar a corrupção e administrar a República Tcheca como uma empresa. Quando os tchecos deram a seu partido uma vitória esmagadora em 2017, eles não viam problema nessas promessas. Na época, Babiš foi acusado de várias práticas corruptas envolvendo seus negócios, incluindo o recebimento indevido de subsídios europeus. Estas alegações continuaram a persegui-lo ao longo do seu mandato, o que levou o Parlamento Europeu a condená-lo, há alguns meses, por conflito de interesses.

Então, era de se esperar que Babiš aparecesse nos Pandora Papers também. De acordo com os documentos, o empresário repassou US$ 22 milhões a entidades offshore para a compra de um luxuoso castelo francês. Ele se envolveu nesse esquema para manter a compra em segredo e provavelmente para também reduzir sua carga tributária. Esta semana, os eleitores tchecos finalmente mudaram de ideia sobre Babiš e o tiraram do gabinete presidencial.

Outros políticos “anticorrupção” também foram enredados na rede de documentos incriminadores dos Pandora Papers. Volodymyr Zelensky, por exemplo, prometeu aos eleitores que limparia o “pântano” de corrupção da Ucrânia, mas os Pandora Papers revelaram que ele possuía ações de entidades offshore e empresas de fachada. Oh, Zelensky “limpou” muito bem!

O que nos surpreende sobre os 35 atuais e ex-líderes mundiais que aparecem nos Pandora Papers não foi tanto sua presença na lista – Ali Bongo do Gabão, por exemplo, é notoriamente corrupto, e Sebastian Piñera, do Chile, já estava vinculado a quatorze investigações de corrupção antes de se tornar presidente novamente no final de 2017 – mas o fato de que eles fizeram de tudo para esconder seus negócios do grande público.

O rei Hussein da Jordânia é um monarca, gente! Espera-se que os monarcas gastem muito. A rainha da Inglaterra tem US$ 500 milhões em ativos pessoais, e quase ninguém liga para todo o dinheiro que a realeza gasta publicamente em casamentos, festas e similares. E, no entanto, de acordo com os Pandora Papers, o rei Hussein começou a coletar US$ 100 milhões em propriedades em todo o mundo em segredo. Claro, a Jordânia é um país relativamente pobre, e o governo impôs medidas de austeridade muito impopulares. Não seria bom para o rei comprar três mansões no topo de uma montanha em Malibu, quatro apartamentos em Georgetown e várias propriedades perto do Palácio de Buckingham.

A tolerância com os fabulosamente ricos às vezes aumenta e às vezes diminui. Na década de 1980, os telespectadores empolgavam-se ao assistir o “estilo de vida dos ricos e famosos”. Hoje em dia, a raiva vem crescendo continuamente contra o 1%. É por isso que reis e políticos têm sido mais discretos na movimentação de suas riquezas.

E é por isso que os governos sentem que têm o público do seu lado quando tentam, mesmo que de forma fraca, colocar as mãos nesse fluxo de riqueza que circula globalmente.

Fazendo o mínimo

Uma das virtudes da globalização, da perspectiva de uma empresa, é a capacidade de mover operações de uma jurisdição para outra para aproveitar as melhores condições tributárias. Alguns países, como a Irlanda e a Hungria, se autodenominam paraísos fiscais para as empresas que desejam pagar o mínimo possível de impostos.

Por estímulo dos Estados Unidos, a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) tem pressionado por uma alíquota tributária mínima de 15% para empresas. O país também tributará as empresas digitais em locais onde operam, mesmo que não tenham nenhum escritório físico lá.

Tudo isso é inferior ao que os Estados Unidos inicialmente pressionaram: uma taxa de 21%. A medida, se aprovada, virá depois de um período de transição de 10 anos. E não está totalmente claro se os próprios Estados Unidos ratificarão o acordo, dada a previsível oposição republicana. Mas ora, já é alguma coisa.

Esse esforço pode causar uma pequena redução nas receitas brutas dos mais ricos do mundo, como Jeff Bezos da Amazon e Mark Zuckerberg do Facebook. Mas mesmo uma pequena porção já representa uma grande receita. “Os paraísos fiscais custam coletivamente aos governos entre US$ 500 bilhões e US$ 600 bilhões por ano em receitas fiscais corporativas perdidas”, escreve o especialista Nicholas Shaxson. “Dessa receita perdida, as economias de baixa renda respondem por cerca de US$ 200 bilhões – uma perda maior como porcentagem do PIB do que as economias avançadas e mais do que os US$ 150 bilhões que recebem a cada ano em ajuda externa para o desenvolvimento.”

Não são apenas as empresas que escondem seus lucros das autoridades fiscais. Indivíduos continuam a lucrar enormemente com a economia global e, com a ajuda de seus contadores, evitam o máximo possível pagar impostos a seus respectivos governos. Shaxson cita algo entre US$ 8,7 trilhões e US$ 36 trilhões em evasão fiscal, ao que acrescenta pelo menos outros US$ 200 bilhões em receitas fiscais governamentais perdidas por ano.

Para aproveitar as taxas de impostos baixas ou inexistentes, os ricos adoram “estacionar” seu dinheiro, e às vezes eles próprios, em lugares como Bahamas e as Ilhas Cayman. Mas a verdadeira surpresa dos Pandora Papers é o status do estado norte-americano de Dakota do Sul como um “ímã” de capitais. Como aqueles paraísos insulares, Dakota do Sul não cobra imposto de renda, sobre herança e sobre ganhos de capital. E, como a Suíça de antigamente, protege o dinheiro dos ricos por trás de muito sigilo.

Além disso, os fundos da Dakota do Sul oferecem outra coisa que os ricos anseiam: negação. Como Felix Salmon explica, “todas as três partes – o instituidor, o administrador e o beneficiário – podem alegar legalmente que o dinheiro não é deles. O ‘instituidor’ e o beneficiário podem dizer que não possuem o dinheiro, que está tudo em um truste administrado por outra pessoa. O administrador pode dizer que ele está apenas cuidando do dinheiro e não o possui.”

Em outras palavras, os ricos geralmente querem a máxima discrição possível – para evitar a receita federal, o credor persistente e a raiva das multidões.

Portanto, o primeiro passo para limpar essa bagunça altamente lucrativa é a luz solar. Uma ferramenta global é o Common Reporting Standard, pelo qual os países participantes fornecem informações básicas sobre ativos estrangeiros mantidos em seus territórios. Adivinhe: os Estados Unidos é o único entre os principais países que não participa. Em sua maneira excepcionalista usual, os EUA compartilham informações financeiras em seus próprios termos, e não de acordo com um padrão global. A clareza deve se estender também às empresas, que devem ser obrigadas a apresentar informações financeiras de todos os países onde operam.

O próximo passo é acabar com os paraísos fiscais. A União Europeia mantém uma “lista negra” de paraísos fiscais, mas tem apenas nove locais depois da recente remoção de Anguila, Dominica e Seychelles. “A decisão de hoje de remover Anguila, a única jurisdição remanescente com uma taxa de imposto de 0%, e as Ilhas Seychelles, que estão no centro do mais recente escândalo fiscal, torna a lista negra da UE uma piada”, conclui Chiara Putaturo da Oxfam. Portanto: é preciso melhorar as “listas negras”.

E, é claro, muito mais deve ser feito para aumentar o piso das taxas de imposto sobre as empresas. Os Estados Unidos estavam certos (pela primeira vez): 15% é muito pouco.

Afogue os super-ricos

Décadas de desregulamentação levaram ao surgimento de uma nova classe de super-ricos. Mais de 500 mil pessoas em todo o mundo possuem mais de US$ 30 milhões cada, e metade delas vive nos Estados Unidos. Desse último número, mais de 700 são bilionários e viram sua riqueza coletiva aumentar em US$ 1,8 trilhão durante a pandemia.

É hora de os ricos distribuírem de forma justa a sua parte. O planeta está apresentando sua conta à humanidade. “Pague”, diz a Mãe Terra, “ou você está frito”.

No momento, aqueles que são menos capazes de arcar com os custos das mudanças climáticas estão sofrendo seus piores efeitos. Em 2015, o Banco Mundial estimou que, a menos que a comunidade internacional tomasse medidas imediatas, as mudanças climáticas empurrariam 100 milhões de pessoas para a pobreza até 2030. Essas medidas imediatas não foram tomadas. Como resultado, mais de um milhão de pessoas estão à beira da fome por causa da seca em Madagascar. Ilhas pobres como o Haiti são especialmente vulneráveis às mudanças climáticas, e a população simplesmente não tem condições para se adaptar às mudanças dentro de suas circunstâncias de vida.

Em outros lugares, os pobres estão fazendo tudo o que podem para manter a cabeça acima da água. Em um recente e surpreendente estudo, o Instituto Internacional para o Meio Ambiente e Desenvolvimento relata que os pobres das zonas rurais em Bangladesh estão gastando mais do que seu governo ou que as agências de ajuda para combater os impactos do clima em suas comunidades.

Os ricos ficaram claramente envergonhados de suas riquezas, tanto que fazem de tudo para manter suas transações em segredo. Agora, podemos constrangê-los ainda mais para que paguem o que é necessário para salvar o planeta?

Texto original: OUTRAS PALAVRAS


Nenhum comentário:

Postar um comentário