terça-feira, 12 de abril de 2016

'Desde a Grécia antiga, a dívida foi um instrumento de dominação'

As dívidas funcionam para estabelecer e reproduzir relações de dependência colonial, determinando formas particulares de dominação econômica e política.

Julia Goldenberg - Página/12


Para o estudioso grego, a dívida externa e o predomínio das forças do mercado na política transformam as instituições e os laços sociais, e substituem a soberania popular pela soberania do mercado.

– Você retoma o conceito de “pós-democracia” como categoria de análise vigente. De acordo com essa perspectiva, como é possível reativar os mecanismos democráticos?

– O termo “pós-democracia” surge na última década, na sociologia e na teoria política, para compreender conceitualmente e marcar criticamente as patologias contemporâneas da democracia liberal, sobretudo com relação às condições estabelecidas pelo capitalismo tardio. Nesse tipo de regime, o aspecto formal das instituições democráticas permanece intacto: por exemplo, as eleições se desenvolvem normalmente para as transições de um governo a outro. Ainda assim, a magnitude do debate eleitoral se transforma num espetáculo controlado, manejado por
especialistas e regulado pelos meios de comunicação dominantes, onde se tratam os temas selecionados por eles e onde a cidadania fica reduzida a um papel passivo. Então, quando se tenta realizar uma mudança real (como na Grécia, em 2015), os governos percebem que o alcance de seus movimentos estão bastante restringido pelas – supostamente independentes – instituições supranacionais (o Banco Central Europeu, o FMI, etc). Nesse sentido, a política em tempos pós-democráticos se forma cada vez mais pela interação entre os governos eleitos e pelas instituições da elite, assim como pelos organismos que representam majoritariamente os interesses comerciais. Esse predomínio das forças do mercado na política não é considerado escandaloso, como foi no passado, algo que deveria ser camuflado de alguma forma, e que agora não é ocultado de nenhuma forma. Isso é abertamente abraçado e, de fato, as instituições públicas ficam subordinadas à essa dinâmica. A nova gestão pública, nesse sentido, buscou reformar as instituições – hospitais, universidades, etc – de acordo com os interesses do setor privado. Logo, a pós-democracia significa “democracia sem `demos´”, como apontou Jacques Rancière, um sistema onde o povo desaparece da cena política e seu papel é ocupado por uma aristocracia tecnocrática, onde a soberania popular é substituída pela soberania do mercado. Em outras palavras, o “povo” é registrado na esfera política como a “população”, como um conjunto numérico de individualidades a ser administrado e disciplinado biopoliticamente. Quando as resistências emergem, quando as novas subjetividades democráticas e populares se formulam, suas demandas são denunciadas e desacreditadas, sob a etiqueta do perigoso e irresponsável “populismo”. Se a defensa das instituições democráticas e dos interesses populares hoje leva o nome de populismo, então talvez o populismo deveria ser tomado e canalizado em direções progressistas.

– É possível traçar um limite geopolítico de acordo sobre esses conceitos?


– Obviamente. O termo “pós-democracia” foi formulado por Colin Crouch, entre outros, a partir da experiência europeia. Não há dúvidas, porém, que captura uma dinâmica global, visível numa variedade de países e regiões. É por isso que se verifica tal amplitude do uso de “pós-democracia” e “pós-política”. Sendo suficientemente flexíveis desde o seu início, os termos se reúnem cada vez mais, para descrever os fenômenos políticos em diversas regiões do mundo, fora do contexto do oeste europeu, onde esta terminologia surgiu originalmente. Ao mesmo tempo, a crise global iniciada em 2008, e que foi especialmente localizada na Europa, deixou em evidência, através da implementação de certas medidas de austeridade draconianas no sul da Europa, um aprofundamento adicional da orientação pós-democrática. Hoje, a Europa parece estar diante de um novo desafio: como avaliar o estabelecimento e a consolidação – através da crueldade – de uma sociedade da dívida neoliberal? Esse é o sinal de um aprofundamento da pós-democracia, ou talvez signifique a passagem para um estágio além da pós-democracia? Se for assim, a pergunta é: em que ela se transformou exatamente? Embora não existam respostas conclusivas, estão se instalando, e talvez seja tempo de começar a plantear algumas perguntas. Para compreender completamente a nossa situação, devemos considerar que o neoliberalismo alemão não deve ser confundido com o laissez-faire, com o resultado de uma ordem natural espontânea (a mão invisível do mercado), e sim, como destacou Foucault, com una vigilância permanente, atividade e intervenção. Essa intervenção é de uma natureza particular, bem diferente, por exemplo, de um Estado de Bem-estar: seu objetivo – às vezes imposto com imensa brutalidade – é condicionar o cenário para uma possível economia de mercado que intervém na população e reforma o próprio laço social. Como alguns comentaristas defendem, esse é o estatismo sem Estado, estatismo a favor da mercantilização, acompanhado pela liquidação de toda regulação do mercado e das relações de trabalho, etc. Novamente, esse movimento não é particular da Europa. Por exemplo, a América Latina se está aproximando agora desse modelo. O Chile é um exemplo de país que viveu uma brutal imposição de um sistema similar, desde os Anos 70. Essas são dinâmicas globais, e somente podem ser abordadas a nível global.

– Isso significa que o Estado se reduz à administração da dívida?

– Desde a antiga Grécia, a dívida foi um instrumento de dominação e exploração, e sempre foi muito brutal. Não devemos esquecer que o estabelecimento da democracia de Atenas está relacionada com o cerceamento da participação dos servos, devido às suas dívidas. Também sabemos que as dívidas, atualmente, funcionam para estabelecer e reproduzir relações de dependência colonial. Em muitas conjunturas históricas, as relações de dívida estruturam o laço social, determinando as formas particulares de dominação econômica e política. Quando isso acontece – e acontece porque a dívida funciona simultaneamente como uma força econômica, política e moral – é porque produz e condiciona tipos particulares de subjetividades individuais e coletivas, manipulando a dinâmica psicossocial da culpa, da vergonha e do sadismo, e aí é quando falamos de “sociedades de dívida”. Em décadas recentes, por exemplo, o pêndulo entre os dois espíritos de capitalismo, típicos da modernidade – o primeiro espírito, o weberiano, do ascetismo associado a uma “sociedade da proibição” e o segundo espírito, do consumo, associado a uma “sociedade do desfrute ordenado” – tomou uma forma marcada pela dialéctica entre o estímulo do crédito e a estigmatização da dívida. No caso da Grécia contemporânea – que não é um caso isolado – vimos como as forças institucionais promovem, ao mesmo tempo, todas essas opções. No princípio, antes da crise, a acumulação da dívida estava permitida, e inclusive se propagou, com o impulso do “espírito consumista” do capitalismo. Logo, as mesmas instituições elevaram a dívida a níveis patológicos, para serem castigados com formas de servidão pós-modernas. Essas lógicas foram aplicadas tanto em nível subjetivo como em nível estatal. Em qualquer caso, a acumulação da dívida, assim como o castigo do endividamento, constituem momentos anti éticos desse mesmo mecanismo, e só resta a construção subjetiva a serviço da hierarquia social. Então, quando o laço entre os dois falha, até mesmo o cancelamento da dívida e o perdão da mesma são evocados, para sustentar a ordem social. Voltando à Grécia, muitos anos depois da crise, a troica também aceitou processos de reestruturação de dívidas. Esse cancelamento da dívida (de forma parcial) fracassou na hora de fazer alguma diferença real na viabilidade a longo prazo da dívida grega, ou na situação atual do povo grego. As promessas de uma gestão mais suportável da dívida ainda são utilizadas, como um futuro sonhado. Essa é razão pela qual a experiência argentina continua sendo tão importante: porque a reestruturação de dívida não era um mote publicitário, ou uma concessão parcial, oferecida em troca de uma continuidade das relações de dependência. Ao contrário, foi massiva e imposta por um governo democrático-popular, afirmando sua independência.

– Por que você sustenta que é necessário estudar as políticas desenvolvidas na América do Sul?

– Justamente porque essas políticas foram inicialmente introduzidas na América do Sul, as primeiras resistências também foram articuladas nessa região. Assim, o fim da ditadura de Pinochet no Chile, o colapso do pacto de Ponto Fixo na Venezuela e o fracasso do neoliberalismo patrocinado pelo FMI na Argentina confluem numa série de projetos políticos que redirecionaram o equilíbrio do poder voltado à participação popular no processo de tomada de decisões, facilitando a incorporação socioeconômica dos setores empobrecidos e regulando os efeitos da globalização neoliberal.

– Alguns comentaristas qualificam essa tendência como “progressista”, de “esquerda” ou “populismo inclusivo”, com o objetivo de distinguir seu perfil e suas implicações políticas da extrema direita, ou do “populismo excludente”, próprio da experiência europeia.

– Minha opinião sobre esse assunto é que a maioria dos movimentos de extrema direita, nunca foram, estritamente falando, populistas, e não deveriam ser descritos como tais: seu principal ponto de referência é a “nação” – não num sentido anticolonial, mas sim no sentido étnico, inclusive racista, do termo –, e seu adversário não é esse 1% da população, os mais ricos do mundo, e sim os outros grupos étnicos: os refugiados, os imigrantes, etc. Ainda assim, a diferenciação entre a direita como ícone do populismo excludente (no modelo europeu) e a esquerda como exemplo do populismo inclusivo (no modelo sul-americano) é um primeiro passo, e importante, porque registra o potencial democrático das demandas populares e dos movimentos e partidos que as representam. O que também é interessante é que a crise econômica europeia e os efeitos da sua gestão neoliberal foram deslocando o tradicional sistema de partidos em países como a Grécia, a Espanha e Portugal, tornando possível o surgimento de outros partidos. Duas situações aparecem, a partir disso: na primeira, os países europeus – especialmente os que integram a Zona Euro – passam a estar mais limitados em suas opções, devido ao avanço da integração transnacional, algo que limita severamente o poder de suas negociações e suas chances de desafiar minimamente a hegemonia liberal pan-europeia – por exemplo, a transformação do retumbante “NÃO”, dado pelo povo grego no referendo de julho 2015, num novo acordo memorando com a troica. Creio que seria preciso uma tendência igualitária, capaz de representar uma grande variedade de países europeus, poderia reverter essa situação. Ou seja, só haverá esperança se a Espanha e outros países seguirem o exemplo da Grécia e de Portugal. O segundo desafio, é que esses projetos devem refletir sobre as limitações de projetos similares na América do Sul, os quais tiveram que enfrentar as recentes derrotas eleitorais, como no caso da Argentina e da Venezuela. É possível aprender dos acertos e também dos erros, como ficou mais evidentes no caso venezuelano? Dessa incapacidade para introduzir um modelo econômico sustentável? Desse fracasso na hora de substituir uma liderança carismática por uma crescente participação das instituições? De suas dificuldades no cultivo de um novo ethos democrático político, e novos tipos de desejo e consumo, capazes de diminuir nossa dependência da globalização neoliberal?

– Então, é possível pensar numa saída regional também para a América do Sul?

– Esse é um enorme desafio para todas as forças que se opõem ao neoliberalismo pós-democrático. Porque não devemos esquecer que o problema – a falta de coordenação transnacional – sempre esteve presente, e é obviamente muito difícil de enfrentar. Da mesma forma, um “internacionalismo”, baseado na ONU, demonstrou ser às vezes impotente, e o problema da dívida é um bom exemplo disso. De alguma forma, as forças pós-democráticas institucionais podem se mover com eficácia entre a orquestração da ação transnacional, e, ao mesmo tempo, a manipulação das sensibilidades nacionais, quando seja necessário. A velha estratégia colonialista de “dividir para governar” é sempre útil. En contraste a ela, a longa história dos movimentos de resistência demostram que o pensamento e a ação simultânea, a nível nacional e internacional, é extremadamente difícil de articular. Porém, algumas medidas para os processos de reestruturação da dívida soberana – iniciados com o caso da Argentina –, como a aprovação do novo marco legal na ONU, têm impacto em qualquer parte do mundo.

– Que consequências trazem a neutralização do antagonismo político, próprio da pós-democracia?

– Em efeito, a orientação pós-democrática margina o antagonismo político, priorizando uma perspectiva tecnocrática das questões em jogo, e buscando a falta de alternativas. O mais importante não é seguir as prescrições universais das políticas neoliberais, mas sim estabelecer que é preciso desfrutá-las! Entretanto, os efeitos secundários das políticas desse tipo – que são usualmente impostas sob o pretexto de reduzir uma dívida artificialmente inflada – incluem o desemprego massivo, um colapso dos salários, das aposentadorias e dos programas de ajuda social, da perda de direitos sociais e trabalhistas, uma espiral descendente da mobilidade social e da expulsão da cidadania das instâncias de tomada de decisões. Posteriormente, surgem necessariamente a indignação social e os protestos. A necessidade de questionar e criticar, junto com a necessidade de limitar a concentração do poder nas mãos das elites irresponsáveis. John Keane falou sobre o que ele chama de “democracias monitoradas”, que é um uso pragmático dos procedimentos democráticos, baseados numa pressão pública para combater a concentração de um poder inexplicável. Aqui, os mecanismos de representação da sociedade civil se combinam com novas formas de monitoramento público do exercício do poder e do controle da corrupção. Não obstante, isso não deve confundir nossas práticas democráticas, para não impor a elas a necessidade de se manter numa postura meramente defensiva. Se a democracia está reduzida a uma variedade de esquemas de vigilância e mecanismos de controle que lidam com um poder que é visto como ilegítimo, então a “soberania popular”, a base da nossa tradição democrática, será perdida para sempre, e não rejuvenescida. Meu medo é que o resultado final do argumento da “democracia vigiada” seja a legitimação indireta de uma teoria elitista, e até mesmo o retorno ao liberalismo oligárquico. Nesse sentido, devemos ser claros, a democracia supõe um autogoverno no nível mais básico: se trata de uma demanda em favor da igualdade de direitos da participação na tomada de decisões, que seja capaz de convocar a totalidade dos cidadãos. Contudo, não podemos esperar que os cidadãos estejam sempre alertas, dispostos a dedicar seu tempo e sua energia em debater e decidir sobre todas as coisas. É por isso que os gregos antigos estabeleceram um conjunto de prêmios para a participação e um conjunto de castigos para aqueles que não participavam na vida democrática pública. Sabemos também, graças a Maquiavel, que uma dificuldade importante do atual cenário tem a ver com o desejo: diferente do desejo dos ricos e poderosos, baseado em possuir “mais e más”, o desejo do povo, dos marginados e oprimidos, é um desejo definido negativamente. O povo deseja, primeiro, “não ser dominado”, e certamente desejam não sê-lo de uma maneira brutal, antidemocrática e pouco digna. É por isso que as lutas populares enfrentam dificuldades em estabelecer suas metas e, paradoxalmente, tendem a aceitar os objetivos dos seus adversários. Portanto, quando um povo previamente empobrecido e excluído recupera, por exemplo, um status de classe media, pode acontecer desse mesmo povo negar sua situação passada e começar a se comportar de uma maneira hierárquica, elitista e excludente.

– Em outra entrevista, você lembrou que os regimes políticos europeus são frágeis, porque o mercado ocupa um lugar central, o que se debilita facilmente, já que nenhuma pessoa pode se apaixonar pelo mercado. Entretanto, os altos e baixos da economia mostram que o mercado também pode seduzir.

– Se nos concentramos nas regiões que mencionamos, a Europa (com sua crise econômica centrada especialmente no sul) e a América do Sul, podemos dizer que vivem uma trajetória similar, mas com uma disposição diferente das etapas históricas. A Europa, por exemplo, se enfrenta a uma crise parecida à que levou à moratória na Argentina. Com o domínio do ordoliberalismo alemão, baseado na chantagem e na extorsão, num “consentimento” forçado, onde a dívida funciona como o instrumento principal da disciplina subjetiva e coletiva. Enquanto a Argentina, depois de passar pelo colapso de um sistema construído em torno da dívida e da coerção, e após a reconstrução da sua economia e da democracia, atualmente parecem ter se esquecido das dificuldades do passado e se voltaram a abraçar as promessas de um futuro dominado por um consumo neoliberal imaginário. Muitos setores na Argentina optaram por um retorno à “normalidade”, um regresso ao capitalismo tardio. Não há nada de extremadamente inusual nisso. Sabemos, graças a Jacques Lacan, que as pessoas desejam aquilo que lhes falta. O objeto que cumpre essa função não é eterno nem fixo, está histórica e culturalmente determinado. E o mais importante, isso também pode variar entre o âmbito público e o privado. Em seu livro “Shifting Involvements”, o economista alemão Albert Hirschman demonstrou como a nossa vida pode seguir um ritmo circular, passando por períodos de intensa participação pública inspirada em ideais altruístas, ou por uma despolitização extrema nos períodos em que os interesses individuais e a realização pessoal ganham prioridade.

Tradução: Victor Farinelli

Texto replicado: CARTA MAIOR

Nenhum comentário:

Postar um comentário