segunda-feira, 26 de novembro de 2018

Com Paulo Guedes, os brasileiros serão ratos de laboratório?

A aliança de Chicago Boys com militares aumenta a chance de um experimento neoliberal radical no próximo governo

Guedes conhece modelos matematicamente sofisticados, mas primitivos e antipopulares
Com Paulo Guedes ministro da Economia, Joaquim Levy à frente do BNDES e Roberto Castello Branco na presidência da Petrobras, são três os Chicago Boys em postos-chave e cresce a expectativa quanto à possibilidade de se tentar no Brasil um experimento neoliberal do tipo radical semelhante àquele conduzido por Ph.Ds. da Universidade de Chicago no Chile, quando do golpe militar de 1973.

A hipótese não se deve apenas, nem principalmente, à presença de rapazes com a mesma formação à frente da política econômica, mas à participação crescente de generais em postos-chave do futuro governo do capitão Bolsonaro e sua convergência com o ideário extremista manifestado pelo cada vez mais poderoso Guedes e equipe em uma simbiose civil-militar semelhante em alguns aspectos àquela ocorrida no país andino.
Em entrevista à tevê em 23 de agosto, o futuro ministro da Economia do Brasil se disse disposto a privatizar todas as empresas e os 700 mil imóveis da União para arrecadar 2 trilhões de reais, a serem usados no pagamento da dívida pública. 
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Na segunda-feira 19, Guedes anunciou a criação de uma Secretaria de Privatizaçõespara acelerar o programa de venda de ativos nacionais. Sob Pinochet, 500 empresas estatais foram privatizadas pelos Chicago Boys integrantes da equipe econômica, cortou-se o gasto público, reduziram-se os impostos sobre o capital, comprimiu-se o gasto social e o investimento público e aboliram-se as tarifas alfandegárias, liberando as importações e abrindo a economia.
A respeito deste último e crucial ponto, recorde-se que a redução unilateral das tarifas de importação e de barreiras não tarifárias foi proposta em outubro no grupo de economistas assessores de Bolsonaro e desmentida ainda na campanha.
Chicago Boys foi o apelido dado, em 1958, pelos alunos da Universidade Católica aos jovens professores recém-chegados de doutorado no Departamento de Economia da Universidade de Chicago, que, na pressa de transmitir em curto espaço de tempo o conhecimento adquirido nas aulas de Milton Friedman, entre outros mestres, não se deram muito bem como professores.
“Quisemos mudar muito rápido, os alunos protestaram e surgiu a designação “Chicago Boys”, conta o Ph.D. em economia por aquela instituição de ensino estadunidense Sergio De Castro, ministro da Economia de Pinochet de 1975 a 1976, ministro das Finanças de 1976 a 1982 e ex-professor, no documentário estarrecedor intitulado Chicago Boys, dirigido por Carola Fuentes e Rafael Valdeavellano.
A formação no exterior tanto de alunos quanto de docentes da universidade chilena era paga pela Agência Central de Inteligência dos Estados Unidos (CIA). “Que a CIA financiou os estudos dos jovens Chicago Boys e de professores da Universidade Católica para preparar um programa para o governo militar não é um rumor ou conspiração.
Isso está documentado pelo Senado dos Estados Unidos no Relatório Church”, afirma Juan Gabriel Valdés, autor do livro Pinochet’s Economists: The Chicago School in Chile,publicado em 1995 pela Cambridge University Press, referindo-se ao trabalho da comissão de inquérito criada, em 1975, sob a presidência do senador Frank Church para investigar atividades ilegais da CIA, da Agência de Segurança Nacional (NSA) e da Agência Federal de Investigação (FBI), inclusive experiências em seres humanos, violações de domicílios, interceptações de comunicações sem autorização judicial e assassinatos.
A admiração de Jair Bolsonaro por Pinochet e os elogios de Guedes e Onyx Lorenzoni à economia chilena são de conhecimento público. “O Chile, para nós, é um exemplo de país que estabeleceu elementos macroeconômicos muito sólidos, que lhe permitiram ser completamente diferente de toda a América Latina”, disse o futuro ministro-chefe da Casa Civil, de acordo com o El País.
Considerar o país andino como parâmetro faz pouco sentido. O Chile tem PIB, população, e área dez vezes menores que o Brasil. Sua superfície corresponde à metade do estado do Amazonas e a população, de 18,5 milhões de habitantes, é pouco superior à da cidade do Rio de Janeiro.
No Atlas de Complexidade Econômica da Universidade Harvard, que associa os fluxos de comércio à capacidade industrial dos países e no qual o Japão aparece como primeiro colocado, o Brasil ocupa um medíocre 53º lugar, mas o Chile tem situação ainda pior, no 64º posto.
Quase sem indústria, a economia chilena depende em 40% do cobre e, ainda, da exportação de peixes e frutas. Em que pese a desindustrialização precoce e acelerada causada pela política neoliberal de Collor e FHC e radicalizada por Temer, o País ainda conta com um parque manufatureiro diversificado e é a décima economia industrializada do mundo.
A primeira viagem internacional do presidente eleito deverá ser ao Chile, decisão que provocou estremecimento das relações entre o Brasil e a Argentina, o maior importador de produtos industriais brasileiros e destino das primeiras incursões externas de Lula e Dilma.
Guedes visitou o país andino nos anos 1980, quando da implantação da reforma da Previdência e teria ficado maravilhado com o que viu. Tornou-se amigo de Chicago Boys como Jorge Selume Zaror, ex-diretor de Orçamento de Pinochet.
A reforma chilena da Previdência não cumpriu, entretanto, vários dos objetivos estabelecidos e hoje está sob revisão. Quando o sistema de capitalização privado gerido pelas administradoras de fundos de pensão (AFP) foi criado, argumentou-se que contribuiria para elevar a poupança nacional e o investimento produtivo.
“Em contraste, as AFP, por falha do arcabouço institucional, pelas políticas econômicas correspondentes e por sua natureza financeira, comportaram-se pro-ciclicamente (agravaram as crises em vez de servir para amortecê-las, conforme prometido pelos seus idealizadores) e aportam pouco à formação de capital e ao financiamento de longo prazo do desenvolvimento produtivo”, dispara o economista chileno Ricardo Ffrench-Davies em balanço da economia do país publicado em 2017.
Em 2009, diz, segundo os dados do Banco Central, os saques das AFP equivaleram a 9,6% do PIB, volume semelhante ao que agravou a situação recessiva na crise de 1999. “As AFP têm mais de 60 bilhões de dólares no exterior. É poupança nacional que se esvai e o fez várias vezes de maneira pro-cíclica”, completa o economista.
Os civis e os militares integrantes do futuro governo brasileiro compraram a ideia de que o Chile é uma joia econômica, mas não é bem assim, mostram o exemplo da Previdência e a situação da economia. “Escuta-se com frequência que o Chile está às portas do desenvolvimento. Vejamos qual é a sua posição relativa. Em moeda comparável, ajustada por Paridade de Poder de Compra, o Chile tem um PIB per capitaque em 2014 alcançava 22.346 dólares, 43% acima da média da América Latina e o maior da região.
Em compensação, seu nível representava só 41% da renda média dos habitantes dos Estados Unidos. Em relação aos EUA, a trajetória do Chile nas décadas passadas mostrou significativos altos e baixos: em 1973, alcançou 27% da sua renda per capita; ao final da ditadura, havia caído, com fortes retrocessos marcados pela profunda crise de 1982-83, a 24%”, dispara Ffrench -Davies.
Sobressai o fato, prossegue o economista, de que, “no final da ditadura, a renda per capita do Chile era inferior à média da América Latina, enquanto hoje é superior a 40% e esta evolução ocorreu inteiramente no período de crescimento com redução da desigualdade no retorno à democracia a partir do governo de Patricio Aylwin, em 1990. O Chile ainda está longe do desenvolvimento”, sublinha Ffrench-Davies.
A união dos Chicago Boys com os militares antecedeu o golpe de Pinochet e, a partir daí, aprofundou-se. Nas eleições de 4 de setembro de 1970, Allende obteve 36,61% dos votos, ante os 35,27% concedidos ao ex-presidente Jorge Alessandri, principal candidato da direita. “As ideias progressistas haviam triunfado pela via democrática, mas para fazer mudanças progressistas você precisa do apoio da vasta maioria, porque tem o poder econômico contra”, analisa Ffrench-Davies em depoimento ao documentário acima mencionado.
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O que havia em comum entre os Chicago Boys e os militares extrapolava a convergência política, mostra esta passagem do depoimento do ex-ministro Sergio De Castro a Carola Fuentes:
• No dia do golpe, 11 de setembro de 1973, eu esta indo para a universidade e no caminho encontrei-me com o colega Ernesto Fontaine, o primeiro estudante da América Latina a obter Ph.D. em economia na Universidade de Chicago. Fomos à Montanha Calán e de lá vimos o bombardeio do Palacio de la Moneda.
• E o que você sentiu naquele momento?
• Ah, uma alegria infinita. Eu disse: bem, o que tinha de acontecer, aconteceu.
Oito horas depois, a sede do governo atingida por mais de 20 bombas continuava em chamas e o presidente Salvador Allende foi encontrado morto.
Durante a ditadura de Pinochet, de 1973 a 1990, mais de 3 mil cidadãos foram assassinados pelos militares, dos quais 1.102 estão desaparecidos, concluíram, em 1991, a Comissão Nacional da Verdade e o Relatório de Reconciliação.
Lá, como cá, a mídia participa de golpes. Agustín Edwards, dono do jornal El Mercurio, engajou-se tanto na articulação com os Estados Unidos e a CIA quanto nas manobras internas. Chefiava o grupo esportivo de iatistas integrado pelo Chicago Boy Emilio Sanfuentes, o militar reformado da Marinha Roberto Kelly e o almirante José Toribio Merino, todos no epicentro da mobilização.
Foi Sanfuentes quem encomendou a De Castro, em março de 1973, a elaboração de um programa econômico, registra o documentário citado acima. Concluído o trabalho, o programa volumoso o suficiente para ser apelidado de El Ladrillo (O Tijolo) foi entregue por De Castro a Kelly, que repassou algumas cópias a Merino.
O autoritarismo de Pinochet garantiu o neoliberalismo (Foto: Wikimedia)
Execrado mundialmente, o movimento precisava de uma fachada. Segundo Juan Gabriel Valdés, “os golpistas necessitavam estabelecer-se para os militares e internacionalmente como um regime viável. Dessa perspectiva, a presença de Milton Friedman no Chile era muito importante.
Era preciso trazer a figura exponencial da Escola de Chicago, o vencedor do Nobel de Economia de 1976, para provar que, apesar de o mundo todo rejeitar a brutalidade do regime de Pinochet, ele tinha conexões internacionais especiais que lhe davam prestígio, permitiam-lhe ter influência e transferiam credibilidade ao que eles estivessem fazendo”. O encontro aconteceu e fotos de Friedman com Pinochet rodaram o mundo.
Com a falência estrepitosa da proposta neoliberal em 2008, ficaram mais evidentes as falácias da doutrina que mesmo em seu apogeu e apesar da sofisticação matemática era vista como frágil, ideologizada e comprometida pelo senso comum, segundo muitos economistas, entre eles alguns alunos do próprio Departamento de Economia da Universidade de Chicago, como o já mencionado Ricardo Ffrench-Davies: “Assisti a muitas aulas de Friedman para ouvi-lo e ele era divertido, mas extremamente neoliberal, muito primitivo na sua visão de como a economia funcionava. Brilhante na exposição, mas primitivo nas suas propostas. Para alguém receptivo a toda essa visão antiestatal e de que o mundo dos negócios deve cuidar de tudo, o que iria permear as mentes com muita força? O modelo econômico. O mercado sabe”.
O primarismo dos Chicago Boys exposto nos depoimentos colhidos por Carola Fuentes é intrigante. Ernesto Fontaine, por exemplo, relata seu primeiro encontro com o professor de Chicago Arnold Harberger, que viria a ser uma espécie de mentor dos pupilos chilenos: “Me encantou a camisa xadrez amarela que ele usava. Este era um país de merda e essas coisas simplesmente não existiam. Eu queria comprar a camisa dele”.
Parece ter-lhe escapado que, se não existia em seu país a peça de vestuário tão almejada, não era por força do destino, mas em decorrência de o Chile praticamente nunca ter desenvolvido um setor industrial, situação que ele próprio ajudou a perpetuar com a política econômica imposta no período de Pinochet.
O Chicago Boy Rolf Lüders, ministro da Fazenda e Economia de 1982 a 1983, não se sai melhor: “Algumas pessoas ficam furiosas comigo quando digo isso, mas o grau de inveja tem de ser diminuído. Porque o problema da distribuição de renda é um problema de inveja. Eu invejo a pessoa que tem mais dinheiro”.
Um dos mais respeitados críticos da Escola de Chicago, Richard Posner, de Harvard, assim respondeu à pergunta de John Cassidy, da New Yorker, sobre o que é a macroeconomia de Chicago e o que deu errado com ela: “Voltando a Milton Friedman, havia a ideia de que a Grande Depressão era um produto de política monetária inepta e poderia ter sido evitada se o Fed não tivesse restringido a oferta monetária. Isso permanece muito controverso, mas também não preparou ninguém para o que aconteceu recentemente. A preocupação então era que o Fed havia elevado as taxas prematuramente durante a Depressão. Mas agora a preocupação é que as taxas de juro estavam baixas demais no início dos anos 2000, e foi isso que precipitou todos os problemas. Para isso, os monetaristas estavam despreparados. Quando a crise começou, o ex-presidente do Fed Ben Bernanke reduziu a taxa dos fundos federais para zero e nada aconteceu. Esse foi o ponto em que a teoria macro de Friedman, juntamente com a teoria macro de Robert Lucas, não tinha a menor ideia do que havia acontecido. Isso foi muito ruim”.
Posner prossegue: “Também, e mais interessante para mim, (a crise) colocou em questão toda uma abordagem da economia – uma que é muito formal, fazendo suposições muito austeras sobre a racionalidade humana: as pessoas têm muita informação, muita capacidade de previsão. Elas olham para a frente. É muito difícil para o governo afetar o comportamento delas, porque o mercado compensará o que ele fizer. A economia mais informal de Keynes teve um grande ressurgimento porque as pessoas percebem que, embora seja um pouco solta e não cruze todos os “tes” nem coloque todos os pingos nos “is”, parece ter maior compreensão do que está acontecendo na economia”.
Friedman foi alvo de menções nada elogiosas nos protestos populares que tomaram as ruas de Santiago e outras cidades chilenas nos últimos anos e deixaram os Chicago Boys estupefatos. “Nós não vamos descansar, temos que denunciar esta economia neoliberal... A causa da desigualdade é o neoliberalismo... Sim, para o governo sou um número… Algo cheira mal... Menos Friedman e mais Keynes” eram os dizeres de alguns cartazes empunhados pelos manifestantes.
“As coisas estão bem, mas o povo não acha isso. É incrível, é incrível. É a melhor economia da América Latina e o povo não parece perceber isso”, disse um perplexo Arnold Harberger. “Não sou político, sou economista. Não sou psiquiatra e, francamente, não entendo os protestos. Fico frustrado por não poder explicá-los”, desabafou o ex-ministro de Pinochet Sergio De Castro.
“Todos os dias nos dizem que estamos às portas do desenvolvimento. Com 20 mil dólares per capita, estamos às portas do desenvolvimento. E, se você diz isso ao povo, 70% respondem: ‘Maldito, eu não sou desenvolvido. A minha casa não é desenvolvida, o meu trabalho não é desenvolvido, a educação das minhas crianças não é desenvolvida. Então há algo aqui que está se acumulando’”, resume Ffrench-Davies.
Texto original: CARTA CAPITAL

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