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quarta-feira, 2 de setembro de 2020

As dores que nos restam são as liberdades que nos faltam

 A educação deve ser vista como um meio de igualdade e de ascensão social e não um lugar de reprodução de privilégios


Redação, 25 de junho de 2018


A Declaração da III Conferência Regional da Educação Superior, aprovada dia 14 de junho na Universidade Nacional de Córdoba, nos convoca “a lutar por uma mudança radical por uma sociedade mais justa, democrática, igualitária e sustentável”. O encontro celebrou um século do movimento por reforma do ensino na Argentina, em que os estudantes proclamaram que “as dores que nos restam são as liberdades que nos faltam”. Pobreza, desigualdade, exclusão, injustiça e violência social são dores que existiam à época e que continuam existindo, constataram os participantes da conferência.

domingo, 24 de dezembro de 2017

Impostos: implacável com o mais pobre


Por Marcio Pochmann, na Rede Brasil Atual:

Do ponto de vista contábil, o Estado devolve através de políticas públicas para o conjunto da sociedade o que capturou na forma de tributação do excedente gerado pelo processo econômico, após deduzir o custo do seu próprio funcionamento. Nesse sentido, interessa saber a eficácia e o custo do Estado para gastar o que arrecada pelos impostos, taxas e contribuições, bem como de onde vem e para onde vai a tributação de responsabilidade estatal.

Historicamente, a preocupação arrecadatória no Brasil sempre esteve distante de qualquer preocupação de equidade, pois voltada à acumulação privada e por consequência favorável aos detentores de riqueza. Noutras palavras, a evolução das receitas e dos gastos não deixou de apontar o caráter de classe do Estado, justamente porque tem se apresentado implacável com o pobre e afável com o rico.

terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

Onde está o Estado?

Os serviços públicos são ruins por causa da corrupção? O Brasil é o país com maior carga de impostos? conheça alguns números e tire suas conclusões.

Róber Iturriet Avila; Luís Felipe Gomes Larratea

Não raro há a veiculação da dissociação entre a arrecadação dos governos e o retorno de bens e serviços estatais. O intento, sistematicamente alardeado, é bem sucedido em formar a opinião pública. Não é difícil de compreender a indignação gerada na população, sobretudo frente ao desconhecimento dos parâmetros de carga tributária e da precária informação das benfeitorias do Estado. O obscurecimento e a naturalização das ações estatais permeiam o debate acerca da tributação. Os salários dos parlamentares e os casos de corrupção selam uma visão bem sedimentada, escamoteando as reais intenções da repetição de um mantra não verdadeiro, mas hegemônico. Essa miragem transpassa e gera propositalmente uma cegueira coletiva, que, além de inverídica, está carregada de ideologia e atende a interesses específicos.

O Brasil é um país que oferece um sistema de saúde universal, desde a constituição de 1988. O resultado disso pode ser observado nas taxas de mortalidade infantil e na ampliação da expectativa de vida desde então. Somos exemplo de vacinação e combate a doenças. Graças à ação do Estado a esquistossomose, a cólera e a leptospirose não são epidemias. O Estado está na luz dos postes, nas estradas, nos calçamentos, no transporte urbano, no transporte aéreo, no recolhimento do lixo, na destinação do esgoto, na escola pública (da pré-escola ao pós-doutorado), no policiamento, na defesa territorial. Essa é a parte mais visível. Mas há também Estado na forma de subsídios que garantem a energia elétrica, a produção de alimentos, o investimento em conhecimento, a aquisição de imóveis e o avanço técnico. Há Estado nas políticas de geração de emprego e de desenvolvimento econômico. Ele está também na seguridade social, ou seja, nas aposentadorias, nas pensões por morte, nos seguros de maternidade e de invalidez. O Estado permite a mediação e o julgamento dos conflitos, a reclusão de malfeitores, além da própria organização das regras que nos permitem viver de forma civilizada e não no caos e na guerra como foi marcada a história humana. Não há um dia sequer que qualquer cidadão não esbarre na ação do Estado e não se beneficie diversas vezes dela.

A carga tributária brasileira gira em torno de 36%. O PIB de 2014 deve fechar em, aproximadamente, R$ 5,155 trilhões. Isso significa que a renda per capita é de R$ 25.389,00. Nessa medida, cada brasileiro paga, em média, R$ 761,00 em impostos por mês para atender uma série de garantias legais e de reclamos sociais. Embora seja possível aprimorar a eficiência e reduzir o desperdício, para quem sabe fazer conta, salta aos olhos o óbvio: é um recurso escasso para tudo o que exigimos dos governos.

Outro jargão de senso comum é que se não fosse a corrupção, os serviços públicos seriam melhores. De acordo com a FIESP, o País perde R$ 100 bilhões em corrupção. Ainda que esse dado não seja preciso e nem desprezível, representa apenas 1,9% do PIB. Faz falta, mas não resolve. Em linha semelhante, o discurso de senso comum alega que os impostos servem para pagar os salários dos parlamentares. Não cabe defender o patrimonialismo e a exuberância do congresso, de todo modo, o custo do parlamento brasileiro é de 0,19% do PIB. Já todos os funcionários dos 39 ministérios custam 1,2% do PIB.

As comparações corriqueiras com outros países também ignoram os dados. Na Noruega, por exemplo, a renda per capita é de US$ 100.818,00 e a carga tributária de 44%. Dessa maneira, cada cidadão contribui, em média, com R$ 8.800,00 mensais ao Estado. Ou seja, onze vezes mais do que o brasileiro. É lógico e racional que seus serviços públicos sejam onze vezes melhores do que os nossos.

Já nos Estados Unidos a carga tributária está em torno de 27%. Naquele país, entretanto, não há sistema de saúde pública, não há ensino superior gratuito e nem sistema de aposentadoria e pensões pelo Estado. O cidadão estadunidense que não possui seus serviços privados está à margem.

Um dos papéis do Estado é melhorar a distribuição e permitir melhores oportunidades a quem está na base da pirâmide social. Isso está ancorado na compreensão teórica de que o mercado não é plenamente eficaz em permitir oportunidades iguais a todos. Quanto se tem em conta que metade dos brasileiros recebe até R$ 1.095,00 mensais, logo se conclui que milhões de pessoas não teriam acesso algum à saúde e à educação não fosse o Estado. Ao se efetuar a conta de onde efetivamente é gasto, constata-se que 71% da arrecadação preenchem apenas três serviços: saúde, educação e previdência.

Cabe observar que a estrutura tributária brasileira está centrada no consumo e na folha de salários, juntas essas rubricas respondem por 76,26% da arrecadação. Já os impostos sobre propriedade perfazem 3,85% do total. Convém constatar também que há segmentos da sociedade brasileira que têm índices de desenvolvimento humano equivalentes ao norueguês e não precisam da saúde pública e da educação pública, muito embora usufruam dessas nas cirurgias de alta complexidade, nos transplantes, no ensino superior e nas bolsas de pós-graduação.

Enxugar o Estado pode ameaçar a sustentabilidade de serviços basilares à vida e à dignidade humana. Pode ameaçar o direito de quem não tem condições de pagar por tais serviços e necessita da intervenção estatal para sua subsistência. Esse tema abarca ainda a justiça social, cuja participação do Estado nos países que lideram os índices de desenvolvimento humano é equivalente à brasileira ou superior. Corrupção, parlamento e ministérios juntos representam 3,29% do PIB. Esse recurso seria suficiente para melhorar substancialmente os serviços públicos?

A retórica de que o cidadão paga impostos e não recebe serviços é astuciosa. Ela vitimiza quem deveria contribuir mais para o bem estar social, como ocorre nos países mais desenvolvidos. Os dados são claros e mostram que a elite brasileira contribui menos em termos tributários do que seus congêneres na maioria dos países do mundo. Ainda assim, querem reduzir o Estado. Quem vai corrigir as distorções históricas de 388 anos de escravidão que viabilizou o enriquecimento da elite brasileira? Como as raízes patriarcais serão extirpadas? A quem interessa um Estado menor?

Róber Iturriet Avila - É Doutor em Economia, Pesquisador da Fundação de Economia e Estatística (FEE) e professor da Universidade do Vale do Rio do Sinos

Luís Felipe Gomes Larratea - Bacharel em Políticas Públicas e bolsista FAPERGS/FEE


Créditos da foto: Ken Teegardin / Flickr

Texto original: CARTA MAIOR

domingo, 21 de dezembro de 2014

Famílias com até dois mínimos arcam com 48,9% dos impostos

publicado em 28 de novembro de 2014 às 19:19

Para os donos da grana, céu de brigadeiro

Reforma tributária: afinal, quem paga a conta?


A continuidade do processo político-econômico de redução das desigualdades e injustiças sociais depende da reforma tributária. O caráter regressivo do sistema tributário brasileiro dificulta o fortalecimento do mercado interno de consumo popular e desestimula o investimento, a variável por excelência para um crescimento autônomo e sustentável

“…o grau em que um sistema [de tributação] produz igualdade econômica, em comparação com o grau de igualdade econômica que prevaleceria sem ele, é uma questão que trata do sentido de justiça social dentro dessa comunidade. Depende da questão, puramente política, de quanta desigualdade quer tolerar a sociedade.” Nicholas Kaldor, economista húngaro

No debate tributário, a primeira pergunta a ser feita é: afinal, quem paga a conta? Quem arca com o ônus do financiamento do Estado?

Dito de outra forma, quais os segmentos sociais suportam, por meio dos tributos arrecadados, o financiamento das políticas públicas? Essa é a questão central.

A pergunta é fundamental também para nos certificarmos, ou não, da eficácia redistributiva do sistema fiscal como um todo, ou seja, para sabermos se o Estado não está dando com uma mão e tirando com a outra.

Entretanto, é notório que o tema da tributação chega à população de forma, propositadamente, superficial e distorcida. O motivo é óbvio: um debate mais profundo sobre o sistema fiscal em geral e a tributação em especial não interessa aos endinheirados e detentores da riqueza. Não interessa, em particular, aos que detêm a riqueza financeira, hoje, crescente no Brasil e no mundo.

De outro lado, as vítimas do sistema tributário vigente, potenciais interessados na questão, muito pouco participam do debate.

Mesmo entre os segmentos populares organizados, nem sempre o debate atinge a questão central e, por vezes, certas reivindicações acabam por reproduzir a ideologia dominante e legitimar as distorções e injustiças existentes.

Na academia, a hegemonia sobre o assunto ainda é da escola liberal, que não só orientou a construção do atual sistema tributário brasileiro como continua pautando as questões sob o seu ponto de vista.

Até mesmo no campo progressista das ideias, gente bem-intencionada, não raramente, reproduz conceitos e formulações no tema tributário cujas premissas fazem parte do edifício conservador.

Há que reconhecer, no entanto, que no interior de partidos de esquerda, como o PT, dos sindicatos mais combativos, de algumas organizações do movimento social e das universidades existe um esforço crescente de militantes políticos e intelectuais com o objetivo de resgatar a importância da tributação para além de sua função meramente arrecadatória, incorporando ao debate sua função regulatória e, sobretudo, redistributiva de renda e de riqueza.

Enfim, levar o debate da questão tributária a amplos setores da população brasileira é uma necessidade e um desafio de todos aqueles que lutam por um sociedade mais justa e solidária.

Tributação e desigualdade

Em janeiro de 2014, a Oxfam, rede internacional de organizações que combatem a pobreza, revelou que as 85 pessoas mais ricas do mundo possuíam a mesma riqueza que a metade mais pobre da humanidade. Em relatório recente, a Oxfam afirma que, entre março de 2013 e março de 2014, essas 85 pessoas aumentaram sua riqueza em US$ 668 milhões a cada dia.

Calcula-se que, se quisesse utilizar toda a sua riqueza e gastasse US$ 1 milhão por dia, Bill Gates necessitaria de 218 anos para acabar com sua fortuna. O relatório demonstra que a desigualdade no mundo intensificou-se nas últimas décadas. De cada dez pessoas, sete vivem num país em que a desigualdade aumentou nos últimos trinta anos. Em países de todo o mundo, é cada vez maior a participação da minoria rica na renda nacional.

Sobre o Brasil, ressaltam-se duas observações relevantes. A primeira é que, ao contrário da tendência mundial, a desigualdade, no país, foi reduzida.

A Oxfam utiliza o Brasil como exemplo de que outro caminho é possível, que o aumento da desigualdade não é consequência inevitável de fatores econômicos supostamente elementares ou um efeito secundário necessário, ainda que desafortunado, da globalização e dos avanços tecnológicos. A desigualdade é o resultado de decisões econômicas e políticas deliberadas.

A segunda referência que vale destacar, pois interessa diretamente ao nosso debate, se refere à regressividade dos sistemas fiscais dos países em desenvolvimento, justamente, diz o relatório, aqueles em que o gasto público e a redistribuição são mais necessários.

O estudo mostra que, após a incidência dos tributos e a efetivação dos gastos públicos pelas transferências governamentais, a redução da desigualdade, medida pelo coeficiente de Gini, alcança menos de 10% na média dos países da América Latina e Caribe.

Nesse caso, o Brasil não é diferente dos demais. Nosso sistema fiscal pouco reduz a desigualdade, o índice é levemente superior aos de nossos vizinhos.

A média de redução obtida pelos sistemas fiscais dos países da OCDE representa algo em torno de 35%. Finlândia e Áustria são citadas como exemplos de países que reduzem a desigualdade de renda à metade graças a um sistema tributário progressivo e eficaz acompanhado de um gasto social bem orientado.

Um sistema fiscal compreende duas frentes: a política de captação de recursos, em que a tributação tem grande importância, e a política de aplicação de recursos, que podem ou não ter finalidades sociais.

No caso brasileiro, não obstante o peso excessivo dos encargos financeiros suportados pelo Estado, freio ao perfil social esperado do gasto público, é evidente que a baixa eficácia do sistema fiscal em reduzir a desigualdade econômica responsabiliza muito mais a tributação, pelas suas fortes características regressivas, do que os gastos.

O sistema fiscal brasileiro repassa às famílias mais pobres, sob a forma de gastos sociais, recursos pouco maiores aos que lhes foram retirados por meio dos tributos.

A regressividade caracteriza-se por tributar proporcionalmente mais os que recebem menos, e vice-versa. Segundo dados do Ipea, em 1996, famílias com renda até dois salários mínimos arcavam com uma carga tributária de 28,2%; em 2003, o ônus tributário elevou-se para 48,9%.

Na faixa de renda familiar superior a trinta salários mínimos também houve elevação da carga tributária, mas em menor proporção, de 17,9% para 26,3%, no mesmo período.

A principal razão da acentuada regressividade da tributação brasileira é sua concentração em impostos indiretos, que incidem sobre mercadorias e serviços, como o ICMS, a Cofins, o IPI, o ISS, entre outros.

Sendo passíveis de transferências aos preços, apesar de recolhidos pelas empresas, esses tributos são, de fato, suportados pelos consumidores finais.

Os mais pobres, por consumirem o equivalente a toda a sua renda, são também nesse caso são os mais onerados. Considerados os três níveis de governo, mais da metade da arrecadação nacional provém da tributação indireta, também chamada de tributação sobre o consumo.

Sobre a tributação da renda, o dito popular “quem paga imposto é o assalariado” encontra pleno respaldo na realidade brasileira.

A maior alíquota do Imposto de Renda da Pessoa Física (27,5%) pode ser considerada alta em relação aos rendimentos recebidos pela classe média.

Na outra ponta, a fatia significativa das altas rendas é destinada aos sócios e acionistas, beneficiários de lucros e dividendos distribuídos pelas empresas, e não se submete à tabela de incidência do IR, pois a partir de 1996 esses ganhos tornaram-se “rendimentos isentos e não tributáveis”.

Também não se submetem à tabela do IR os beneficiários de aplicações financeiras, para as quais estão previstas diferentes alíquotas, sempre inferiores às aplicadas aos assalariados, e em alguns casos a isenção. Atualmente, a tributação sobre a renda representa cerca de um terço da arrecadação, mas em 2000 respondia por apenas 25% do total.

A tributação sobre o patrimônio não ultrapassa os 4%. É uma vitamina para a concentração de riqueza. O maior percentual dos recursos correspondentes vem da cobrança do IPVA.

O propalado fato de os jatinhos não pagarem esse tributo é somente um emblema dos privilégios aos de cima.

No que se refere à tributação do patrimônio, disputam o topo da lista das principais injustiças tributárias: a dificuldade, bem conhecida dos governos municipais de orientação popular, em fazer valer a progressividade do IPTU, prevista na Constituição Federal; a ínfima tributação das grandes extensões de terra, pois o Imposto Territorial Rural não atinge um milésimo da arrecadação nacional, neste país de enorme concentração fundiária; as reduzidas incidências dos tributos sobre a transmissão de bens e direitos, inter vivos ou por herança; e a postergação continuada da instituição do Imposto sobre Grandes Fortunas, já previsto na Carta de 1988.

Inversamente ao que ocorre no Brasil, nos países desenvolvidos a tributação sobre a renda e o patrimônio corresponde a cerca de dois terços da arrecadação, conforme dados da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE).

É importante destacar, ainda, que os fluxos de capital desregulado e livre de tributação, além do potencial desestabilizador às economias nacionais, aprofundam a regressividade.

Do mesmo modo, a utilização dos paraísos fiscais resulta em significativa evasão de tributos. O enfrentamento dessas questões requer um conjunto de ações combinadas, no plano nacional e internacional.

Herança patrimonialista e a persistência da injustiça tributária

Aqui ou em qualquer parte do mundo, a questão tributária embute em seu núcleo central um conflito distributivo fundamental sobre o ônus de financiar o Estado e as políticas públicas. Trata-se de uma das expressões do conflito de classes. Por isso, é preciso enfatizar que a ideologia, no sentido de mascaramento da realidade social, sempre permeou esse debate.

No caso brasileiro, é preciso acrescentar alguns elementos históricos. Inserida na ordem de valores de uma sociedade nascida do colonialismo, da escravidão e do latifúndio, remanesce, com força, a ideia de tributo como agressão ao patrimônio individual, que remonta aos tempos do Império.

A Constituição de 1824 previa a necessidade de possuir patrimônio ou renda para ser eleitor ou eleito. Resulta disso que qualquer lei tributária seria potencialmente agressora aos considerados “cidadãos”.

“Essa ideia de um Estado patrimonial vem até 1937, porque se mantém a regra que exclui o mendigo do processo político de formação da vontade de Estado (não pode ser eleitor). É um Estado que não aceita qualquer do povo no processo de participação da formação de sua vontade. Exclui os que não têm patrimônio. Por essa razão, a ideia do patrimônio assume, naquela época, o mesmo nível de prestígio que a ideia de liberdade”, afirma o jurista Marco Aurélio Grecco.

“Ora, se o tributo é visto como agressão ao patrimônio individual, o Direito Tributário – como conjunto de normas que regulam o exercício desse poder – passa a ser o escudo para o cidadão defender-se contra uma invasão do Estado”, conclui.

Desnecessário dizer que o liberalismo econômico foi bem acolhido pela elite dominante deste país. No que diz respeito à tributação, até os dias de hoje os liberais assentam sua concepção na ideia de liberdade econômica, inscrita na ordem jurídica como liberdade de iniciativa.

É como se o exercício dos direitos advindos desse princípio não encontrassem limites em outros, igualmente previstos na Carta Constitucional: da função social da propriedade, da solidariedade social, da dignidade da pessoa humana, da isonomia – também chamado de princípio da igualdade – e, especificamente dirigido à tributação, o da capacidade contributiva.

No plano econômico e social, os (neo)liberais querem nos fazer crer que os tributos devem ser instrumentos neutros para financiar o modelo de Estado que lhes convém.

Em sintonia com a defesa extremada da liberdade de iniciativa no arcabouço do Direito, o princípio orientador de sua concepção é o da neutralidade, traduzido pela não interferência da tributação sobre a posição dos agentes econômicos, considerada a situação econômica anterior e posterior à sua incidência.

Segundo sua concepção, não lhe diz respeito qualquer função redistributiva em relação à renda ou à riqueza. Regulação, só em casos extremos. Dizem também que a tributação não deve orientar investimentos.

Do ponto de vista das despesas públicas, admitem medidas compensatórias por meio de gastos focalizados.

As bases do atual sistema tributário brasileiro foram estabelecidas há quase cinquenta anos, com a aprovação do Código Tributário Nacional em 1966. De lá para cá, esse sistema nunca mereceu ser chamado de progressivo, mas já proporcionou dias melhores em comparação ao que se viu durante o vendaval neoliberal.

Nos dois governos de Fernando Henrique Cardoso, a carga tributária foi elevada em quase 6% do PIB. Ocorre que esse incremento se deu em período de predomínio de crise econômica e recaiu sobre a base do consumo e da renda do trabalho. A tributação dos assalariados cresceu até mesmo no período em que houve queda da massa salarial, de 1998 em diante.

De outro lado, houve vontade política bastante para promover a desoneração tributária sobre a renda do capital logo no início do governo, em plena obediência ao preceito neoliberal de que a igualdade é um valor positivo.

O efeito só poderia ser a redistribuição da carga com sentido negativo, criando um paraíso fiscal para os beneficiários do capital e um inferno fiscal para os assalariados.

O brutal aumento da carga tributária foi motivado pela explosão da dívida pública alimentada pelos juros estratosféricos praticados no período, efeito colateral do Plano Real. Assim, o sistema fiscal passou a ser um Robin Hood às avessas: tirava dos pobres, por meio da tributação regressiva, e transferia à banca detentora dos títulos públicos mais bem remunerados do planeta.

Os condutores de tal política gabavam-se de ter realizado uma reforma tributária “silenciosa”. Foi sorrateira, isso, sim.

Pelo menos, trouxe mais uma evidência empírica à advertência de Lester Thurow, professor do MIT, para quem o segredo das reformas tributárias é fazer uns pagarem pelos outros e, normalmente, isso ser apresentado como a mais fantástica obra da ciência das finanças. O aprofundamento da regressividade tributária desse período, com todas as suas consequências sociais, não deveria ser algo a se orgulhar.

Estudo do Inesc constata que, de 2000 a 2011, os tributos incidentes sobre o consumo recuaram, passando de uma participação de 59,75% para 55,74% sobre o total da arrecadação nacional. “Por outro lado, os tributos incidentes sobre a renda evoluíram de 8,57% do PIB em 2000 para 10,76% do PIB em 2011, representando 30,48% do montante de tributos arrecadados em 2011. A carga tributária sobre o patrimônio teve um crescimento de 0,94% do PIB em 2000 para 1,31% do PIB em 2011”.

As alterações na participação relativa de cada uma das bases de tributação no total da arrecadação refletem, sobretudo, os efeitos da retomada do crescimento econômico com resultado no aumento da lucratividade das empresas, além dos efeitos das políticas de emprego e renda.

Quanto às desonerações de impostos e contribuições sociais, é preciso reconhecer que, na maioria dos casos, resulta em redução dos preços ao consumidor e, portanto, em aumento da renda disponível líquida dos consumidores. Entretanto, a queda na arrecadação de contribuições sociais retira recursos importantes da seguridade social, neutralizando parte dos efeitos positivos sobre os mais pobres.

Uma alternativa de caráter progressista seria substituir a fonte de recursos da qual a União abriu mão por outra contribuição social, incidente sobre a base renda ou patrimônio.

As pequenas mas importantes alterações na composição da carga de tributos não foram suficientes para uma reversão do quadro predominante de regressividade tributária no Brasil.

O imperativo político da reforma tributária

Nestas semanas turbulentas que se seguem à reeleição de Dilma Rousseff, no contexto de um processo eleitoral polarizado e marcado pelo ódio e pela intolerância, e em que se vislumbra a expectativa de uma composição predominantemente conservadora do Congresso Nacional, é natural que alguns duvidem da viabilidade de realizar, e até mesmo de propor, uma reforma tributária de caráter estrutural. Mas o que significa não enfrentar essa questão, se a continuidade do processo político-econômico que beneficiou a parte de baixo da sociedade brasileira depende, inevitavelmente, de maior contribuição da parte de cima da pirâmide social?

Como nas últimas eleições, as manifestações de junho de 2013 não nos deixaram esquecer que, apesar dos avanços sociais dos governos Lula e Dilma, parcela substancial da população brasileira, ao mesmo tempo em que questiona o atual sistema de representação política, espera do Estado muito mais e cobra, efetivamente, a ampliação e a prestação de serviços públicos de qualidade bem melhor.

Esse conjunto de lutas atualiza históricas reivindicações populares, a começar pelo transporte público nas grandes cidades, mas também incorporando educação, saúde e segurança pública, assistência social e previdência, saneamento básico, meio ambiente, habitação, cultura e lazer, além da demarcação das terras indígenas e do reforço à pequena agricultura familiar, das políticas afirmativas e do combate às discriminações de todo tipo.

O primeiro fato inconteste diz respeito à urgência no atendimento às demandas sociais, que não pode nem deve ser postergado. A expectativa dos que deram e dão sustentação ao atual projeto político nunca foi tão forte.

O segundo nos remete ao obstáculo a ser transposto pelos governos para a satisfação das principais demandas: a insuficiência de recursos compatíveis com a produção de bens públicos em ordem de grandeza muito superior à atual e com maior agilidade.

O fortalecimento da capacidade financeira do Estado, como é de esperar, irá se defrontar com a obstinada resistência dos herdeiros da casa-grande, que sempre estão na contramão do processo civilizatório. Não há outra saída, é preciso enfrentá-la e superá-la.

No mesmo sentido, se é verdade ter sido possível conduzir um processo de crescimento econômico com elevação da renda e dos níveis de emprego nos últimos anos, com efeitos importantes na redução da pobreza e da miséria, sem precisar lançar mão de reformas estruturais, este ciclo apresenta sinais de fadiga e, ao que tudo indica, está chegando ao fim.

O caráter regressivo do sistema tributário dificulta o fortalecimento do mercado interno de consumo popular e desestimula o investimento, a variável por excelência para um crescimento autônomo e sustentável.

O projeto de desenvolvimento com inclusão social e redistribuição de renda e riqueza pressupõe a revisão da estrutura tributária e a ampliação da tributação sobre os que recebem altas rendas e os que possuem elevado patrimônio, entre outras políticas interligadas.

Pressupõe também a regulação dos fluxos financeiros por meio de uma tributação seletiva dirigida especialmente ao capital especulativo.

A continuidade do processo político-econômico de redução das desigualdades e injustiças sociais depende da reforma tributária. É uma questão a ser enfrentada com toda a determinação, sob pena de derrota não muito distante do projeto político popular e grande retrocesso, com prejuízos sociais aos mesmos que reelegeram Dilma.

A reforma deve, sim, ser uma bandeira dos governos de orientação popular. Mas, sabemos todos, só vingará se o movimento social for o grande protagonista.

Boaventura de Souza Santos, lucidamente, nos conclama: “Sem uma profunda reforma política, não haverá uma reforma tributária e, sem esta, o Brasil continuará a ser um país injusto apesar de todas as políticas de inclusão”.

Paulo Gil Introíni é auditor-fiscal da Receita Federal do Brasil. Foi presidente do Unafisco Sindical entre 1999 e 2003

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Texto original: VI O MUNDO

sábado, 19 de abril de 2014

Executivos dos EUA ganham 331 vezes mais do que um trabalhador médio

De todos os países do Ocidente, o que registra maior disparidade entre renda hoje em dia é os Estados Unidos, segundo várias medições e levantamentos.

Jim Lobe - IPS

Uma pesquisa divulgada nesta semana pela maior federação sindical dos Estados Unidos conclui que os diretores executivos das principais corporações do país ganharam 331 vezes mais dinheiro do que um trabalhador médio em 2013.

Segundo a base de dados de 2014 da Federação Americana do Trabalho e Congresso de Organizações Industriais (AFL-CIO, na sua sigla em inglês), os executivos de 350 empresas do país ganharam em média 11,7 milhões de dólares no ano passado, em comparação com um trabalhador médio, que recebeu 35.293 dólares. 

Esses mesmos chefes tiveram, aproximadamente, uma renda 774 vezes maior que os trabalhadores receberam no salário-mínimo federal por hora, 7,25 dólares, pouco mais de 15 mil dólares ao ano, de acordo com a base de dados. 

Outra pesquisa das principais 100 corporações norte-americanas divulgada no domingo, 13, pelo New York Times concluiu que os ganhos médios de uma liderança dessas empresas no ano passado foi ainda superior: 13,9 milhões de dólares. 

Esse relatório, o Equilar 100 CEO Pay Study, determina que, ao todo, esses altos executivos ganharam 1,5 bilhão de dólares em 2013, ainda mais do que no anterior. Como nos últimos anos, quem teve mais dinheiro foi Lawrence Ellison, diretor-executivo da Oracle: 78,4 milhões de dólares.

Os dois estudos, divulgados enquanto dezenas de milhões de pessoas fizeram sua declaração anual de impostos, colocam lenha no acalorado debate sobre o aumento da desigualdade de renda nos EUA. Esse fenômeno saltou para o primeiro plano com o movimento Occupy Wall Street de 2011. 

O presidente Barack Obama a descreveu como “o desafio que define nosso tempo”, enquanto começa a campanha pelas eleições legislativas de meio de mandato. Ele tentou dar uma resposta aumentando o salário-mínimo e aumentando os benefícios por desemprego e o pagamento de horas extras aos trabalhadores federais, entre outras medidas.

O fato de Obama ter colocado como alvo a desigualdade e os perigos que ela traz lhe fez ganhar certo respaldo intelectual, inclusive teológico, nos últimos meses. Em uma revisão de sua tradicional ortodoxia neoliberal, o Fundo Monetário Internacional (FMI) divulgou um estudo no último mês sobre os efeitos negativos da desigualdade no crescimento econômico e na estabilidade política. 

A diretora gerente do FMI, Christine Lagarde, advertiu que a desigualdade cria “uma economia da exclusão” e que ameaça “o valioso tecido que mantém nossa sociedade unida”. O papa Francisco também se pronunciou reiteradamente sobre os perigos que a desigualdade econômica pode provocar em uma reunião privada que realizou com Obama no mês passado no Vaticano. 

O relatório “Global Risks” do Fórum Econômico Mundial, publicado em janeiro, argumenta que a marcante desigualdade de renda será o maior risco para a estabilidade mundial na próxima década. 

Neste contexto, um novo estudo do economista francês Thomas Piketty, “O capital no século XXI”, que compara a desigualdade de hoje com a do final do século XIX, recebe críticas favoráveis em praticamente todas as publicações dominantes. A obra se baseia em dados de dezenas de países do Ocidente se remetendo aos dois séculos. Piketty expõe a necessidade de medidas radicais de redistribuição como um “imposto mundial ao capital” para reverter as atuais tendências em direção a uma maior desigualdade. O autor está em Washington para discorrer diante de especialistas de vários centros de pesquisa. 

A sentença da Suprema Corte de Justiça que, no começo do mês de abril, ampliou os limites das contribuições que os opulentos podem fazer aos partidos políticos e às campanhas eleitorais faz com que muitos temam que a democracia norte-americana vá por um caminho que leve a uma plutocracia. 

De todos os países do Ocidente, o que registra maior disparidade entre renda é os Estados Unidos, segundo várias medições. Em seu livro, Piketty mostra que esta atual desigualdade dos Estados Unidos ultrapassa a que a Europa tinha em 1990. 

A diferença de 331 para um entre o que os 350 diretores executivos e o trabalhador médio ganham é coerente com a brecha salarial característica da última década. Tal realidade contrasta drasticamente com a que existia depois da Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Em 1950, por exemplo, os salários dos diretores das corporações eram 20 vezes maiores que os dos trabalhadores. 

Em 1980, antes de o governo de Ronald Reagan (1981-1989) começar a implementar suas políticas econômicas da “magia de mercado”, tinha que multiplicar por 42 o salário de um trabalhador para obter o de um alto executivo, segundo Sarah Anderson, estudiosa veterana de compensações do Instituto de Estudos Políticos de Washington.

“Não acredito que ninguém, com exceção talvez de Larry Ellison, possa dizer que os gerentes de hoje são uma forma evoluída dos homo sapiens em comparação com seus predecessores de 30 ou 60 anos atrás”, zombou Bart Naylor, promotor de políticas financeiras da organização Public Citizen.

“Os que criaram a indústria farmacêutica e a da alta tecnologia... eram altos executivos e não drenavam a economia do modo como os executivos de hoje fazem”, disse à IPS. 

“O maquinário de recompensas aos executivos está arruinado”, acrescentou. 

O mortificante para os sindicalistas é que muitas dessas empresas argumentam que não podem se dar ao luxo de aumentar os salários de seus trabalhadores. 

“Pay Watch chama atenção sobre o nível caótico de compensações dos diretores executivos, enquanto os trabalhadores que criam esses lucros corporativos não conseguem sequer receber o suficiente para cobrir gastos básicos”, disse o presidente da AFL-CIO, Richard Trumka.

“Considerem os benefícios da aposentadoria do presidente da companhia Yum Brands, que possui o KFC, Taco Bell e Pizza Hut: mais de 232 milhões de dólares, com impostos diferidos”, disse Anderson.

“É bastante obsceno para uma corporação que emprega mão de obra barata”, completou. 

Atualmente, o Congresso legislativo considera várias medidas para abordar o assunto, apesar de a maioria contar com a oposição dos republicanos, que são maioria na Câmara dos Representantes. 

Entretanto, um projeto tributário apresentado pelo presidente do poderoso Comitê de Meios e Arbítrios da casa pode colocar fim a uma clara injustiça, a que exime os executivos de pagar impostos pelos “honorários por desempenho” que recebem quando cumprem metas estabelecidas pela diretoria da empresa. 

Além disso, a Comissão Nacional de Valores começa a aplicar uma norma pendente há tempos que exigirá que as corporações que têm ações na bolsa revelem os salários de seus diretores executivos, comparados com os de seus empregados em tempo integral, parcial, temporário e sazonal, tanto norte-americanos como estrangeiros. 

Tradução: Daniella Cambaúva

Texto original : CARTA MAIOR