segunda-feira, 28 de setembro de 2015

A gritaria diante da Lava-Jato


Por Paulo Moreira Leite, em seu blog:

Nada como um dia após o outro. Os mesmos observadores que em 2012 fizeram um silêncio cúmplice diante do desmembramento do mensalão PSDB-MG, em 2015 resolveram indignar-se diante da decisão do STF de desmembrar os novos casos da Lava Jato.

Procura-se apontar a decisão como uma manobra que pode favorecer a impunidade de corruptos, dificultar as investigações e até ajudar a presidente Dilma a preservar seu mandato. Bobagem.

O comportamento apenas confirma que forças políticas ligadas aos interesses dominantes - e seus porta-vozes - sentem-se desafiadas toda vez que a Justiça, em particular o STF, não se mostra dócil a seus interesses e prioridades. O silêncio de 2012 era um aplauso. O grito de hoje, uma crítica. Essa reação costuma ocorrer toda vez que a mais alta corte de Justiça dá uma demonstração de independência para tomar decisões.

Os gritos contra a proibição das contribuições eleitorais de empresas privadas só não foram tão estridentes - apesar do esforço de Gilmar Mendes - porque essa é uma questão conhecida e bem compreendida pela maioria dos brasileiros. Foi alvo de inúmeras campanhas de esclarecimento, inclusive de um abaixo assinado apoiado por 7 milhões de pessoas.

Em 2014, quando o STF, numa meia autocrítica da AP 470, decidiu aceitar os embargos infringentes, formou-se um coral apocalíptico. 

Escondida em regras do Direito que só costumam ser avaliadas por especialistas, o desmembramento envolve respeito a procedimentos legais e a decisão de 2015 apenas quer evitar uma situação desmoralizante criada em 2012. Ao negar o desmembramento aos réus da AP 470 o Supremo gerou uma situação inaceitável e absurda.

Vamos recordar. Como sabem os leitores mais antigos deste espaço, sempre fui a favor do desmembramento da AP 470. Não só porque era uma medida coerente com o que já se fizera meses antes no julgamento do mensalão PSDB-MG, mas também porque era o correto do ponto de vista legal. 

A lei determina que réus sem foro privilegiado sejam julgados em primeira instância e possam ter direito, pelo menos, a um segundo grau de jurisdição, antes de uma sentença definitiva.

O desmembramento, nessa situação, era uma forma de respeito pela regra de que todos são iguais perante a lei, que deveria valer não só para acusados do PSDB, mas também do PT. O erro, em minha opinião, não foi desmembrar o julgamento dos tucanos, mas não fazer a mesma coisa com a AP 470. Com o passar do tempo, ficou claro que aquilo que se chamava de erro teve uma utilidade política óbvia - garantir a criminalização do Partido dos Trabalhadores e, ao mesmo tempo, no mesmo processo, com as mesmas denúncias e muitos personagens idênticos, poupar os réus do PSDB.

O desmembramento da AP 470 não teria permitido que acusados como José Dirceu, José Genoíno, Delubio Soares e João Paulo Cunha fossem julgados em Brasília, no STF. Não haveria espetáculo pela TV.

Eles seriam encaminhados para uma Vara de Primeira Instância, como já havia acontecido com os réus do mensalão PSDB-MG.

Embora o advogado Márcio Thomaz Bastos tenha colocado uma questão de ordem cobrando isonomia para uns e outros, por 9 votos a 2 o STF votou, sem ruborizar-se, contra o desmembramento dos acusados petistas, meses depois de autorizar o desmembramento dos mineiros. Mesmo assim, a decisão do STF foi aplaudida, e apresentada como uma forma de combater a impunidade e dar exemplo ao país.

Alguém reclamou contra o desmembramento do PSDB-MG ? Claro que não. Alguém falou que deveria ser revertida? Claro que não. Jânio de Freitas protestou num artigo intitulado "Dois pesos, dois mensalões." Denunciei o duplo tratamento em meu blogue.

Três anos depois da decisão - e dez anos depois que o mensalão PSDB-MG chegou ao Supremo -- a denúncia contra os réus do PSDB-MG encontra-se em algum ponto qualquer do labirinto do Judiciário. A primeira juíza encarregada do caso até se aposentou.

Enquanto boa parte dos petistas já cumpriu pena, e um deles até foi procurado na Itália porque se considerou que era uma questão de honra garantir que que fosse recolhido a presídios brasileiros, nada aconteceu com os equivalentes mineiros.

Eles sequer receberam uma sentença definitiva e é provável que muitos venham se beneficiar de várias formas de prescrição. 

Estamos falando do ex-senador e ex-governador Eduardo Azeredo, do ex-ministro Pimenta da Veiga, e outros mais. Clésio Andrade, ex-senador e ex-vice governador de Minas Gerais, que foi apontado no livro O Operador, de Lucas Figueiredo, como um dos patrocinadores ocultos do esquema de Marcos Valério, renunciou ao mandato, em 2014, e conseguiu pular para a primeira instância.

Empresários como os publicitários Cristiano Paz e Ramon Hollerbach pegaram penas de 23 e 26 anos na AP 470. Sequer foram condenados pelo mensalão PSDB-MG, mais antigo que a AP 470 e, note-se, chegou com antecedência ao STF. O próprio Valério ainda não foi julgado pelas operações envolvendo a atuação em Minas Gerais, berço de sua atividade.

Diante dessa situação absurda, o STF merece aplauso por não repetir o erro de 2012. A minoria formada há três anos - somente Ricardo Lewandowski e Marco Aurélio Mello foram favoráveis ao desmembramento naquela ocasião - tornou-se maioria agora. Ainda bem.

O coral contra o desmembramento da Lava Jato não envolve princípios legais, mas vontades políticas. Apoia-se na noção obviamente absurda de que apenas a força tarefa da Lava Jato tem espírito republicano em dose suficiente para combater a corrupção aonde quer que ela se encontre. Pode ser bom para filmes de Super-Homem e Batman. Não funciona na Justiça dos homens de carne e osso, onde todos são iguais perante a lei e os super-heróis residem nos gibis.

Do ponto de vista legal, a decisão justifica-se como uma forma de respeito pelo princípio do juiz natural, garantia democrática presente em todas constituições brasileiras desde 1829 -- a exceção é a do Estado Novo, que previa tribunais de exceção, inspirados no fascismo. Por este princípio, o juiz deve ser escolhido da forma mais neutra possível, de acordo com critérios definidos pelo Código de Processo Penal, onde o critério primeiro envolve o local do crime.

Um magistrado não pode ser escolhido para examinar um caso em função da cor de seus olhos, de seu credo político, ou porque se atribui uma missão histórica e pretende usar determinados réus para atingir seus objetivos, por mais nobres que possam parecer.

Tampouco pode ser escolhido porque tem mais disposição para punir - ou para inocentar.

Quem age dessa forma está fazendo apologia daquilo que o procurador aposentado e advogado Lênio Streck defende como jurisprudência de Pindorama: decidir primeiro e arrumar as provas depois.

Ou "prender-se primeiro para apurar-se depois" como já criticou o ministro Marco Aurélio Mello, do STF.

Num debate com o próprio Sérgio Moro, Lênio Streck lembrou que negou-se habeas corpus a um réu da Lava Jato que já se encontrava em prisão provisória após 500 dias. "Pindorama é o país da gambiarra. Nós temos tantas garantias na Constituição, mas temos que implorar por elas a todo o momento," disse Lênio Streck.

O próprio Lenio Streck já denunciou outro caso, que não tem relação com a Lava Jato, mas comprova uma imensa vontade de punir, sem a mesma disposição para respeitar os direitos de um réu, a começar pela presunção da inocência. Um acusado condenado foi prisão preventiva a partir de um formulário em que marcava X para a alternativa que considerava correta. O juiz "tascou um X nas alternativas garantia da ordem publica e assegurar a aplicação da lei penal. Simples assim. Não há referência a um caso concreto específico. Há um formulário que fala de um tipo de crime. Incrível. Trata-se da ontoteologizaçãodo direito. O juiz achou o que os filósofos procuram há dois mil anos: o “ser em geral”. A substância de todos os crimes. A essência da prisão preventiva. Sabendo-se a essência, sabe-se tudo. "

Quem combate o desmembramento de qualquer maneira querendo criar uma nova jurisprudência: tudo o que caiu na rede (da Lava Jato) é peixe. Pode?

Por esse raciocínio, o julgamento do mensalão não só não poderia ter sido desmembrado, mas deveria reunir, no mesmo dia, perante as mesmas câmaras de TV, Pimenta da Veiga e José Dirceu, Clesio Andrade e Delúbio Soares, Eduardo Azeredo e José Genoíno, certo?

Quem prevê um futuro de impunidade para as próximas investigações deveria fazer um exame frio da realidade atual. As críticas ao desmembramento refletem, acima de tudo, a decepção de forças políticas habituadas a confiar em sua capacidade de pressão para conduzir a mais alta corte do país naquilo que consideram a direção política mais acertada.

Pode-se apontar casos gritantes de duplo tratamento para situações rigorosamente iguais. Para ficar num exemplo: pagamentos milionários de uma mesma empresa, com os mesmos interesses, em valores equivalentes e até maiores, são tratadas como legítimas contribuições de campanha quando entregues aos tesoureiros do PSDB - mas propinas criminosas quando recebidas pelo PT. 

É fácil perceber quem está mesmo preocupado com impunidade, meus amigos.

Replicado: BLOG DO MIRO

quinta-feira, 24 de setembro de 2015

Os justiceiros do Brasil pariram uma versão da Ku Klux Klan

Para combater os arrastões, alguns cariocas resolveram arregaçar as mangas e fazer o que Sheherazade chamou de 'compreensível': estão caçando 'marginais'.

Kiko Nogueira - Diário do Centro do Mundo

Marginais é uma forma carinhosa de definir todo os que vêm dos ônibus do subúrbio em direção a Copacabana, Ipanema, Leme ou Leblon. No domingo, 20, um coletivo foi parado por um grupo de jovens que tentou partir para o linchamento. “Meliantes” fugiram pela janela.

Tudo foi combinado numa comunidade do Facebook, “Copacabana Alerta”. Após a pancadaria, os elogios pipocavam: “Só assim temos alguma chance de mudar a situação”, dizia um sujeito.

Não é algo isolado. Um pessoal no WhatsApp promete o seguinte: “Próximo fim de semana, já sabem. Porrada vai comer e a chinela vai cantar. Esses pivetes vão ver que aqui se faz, aqui se paga”.

Um policial civil sugeriu algumas medidas: “Em caso de violência contra esses marginais, se alguém atirar e matar um merda desses, não forneçam imagens à polícia! Apaguem imediatamente! Digam que o sistema está com defeito!”

O sistema que está com defeito é outro. Num país em que um ministro do STF se sente absolutamente à vontade para criminalizar quem quiser, atirando gasolina na fogueira das instituições, por que o cidadão comum deveria ser mais civilizado?

O surgimento de gangues em redes sociais é absurdo. Na Alemanha, o discurso do ódio contra refugiados chegou ao limite. Na semana passada, o Facebook anunciou que vai trabalhar em conjunto com as autoridades para coibir manifestações de racismo e xenofobia.

O ministro da Justiça Heiko Maas acusou a rede de agir com rapidez apenas para remover posts com seios nus. Foi montada uma força tarefa. A argumentação é cristalina: segundo a lei alemã, comentários públicos incitando a violência baseados em preconceito religioso e étnico dão até três anos de cadeia. O Facebook não pode ficar acima da lei.

Por aqui, a página Morte ao Lula, por exemplo, criada por um advogado, segue firme e forte. Você conhece milhares de outros casos. Se alguém achava que chegamos ao fundo do poço, sempre é possível dar uma cavada. Um bando resolveu fazer uma versão brasileira da Ku Klux Klan.

Em Niteroi, uma praça amanheceu com cartazes de um tal “Imperial Klans of America Brasil” nos postes.

“Comunista, gay, judeu, muçulmano, negro, antifa, traficante, pedófilo, anarquista. Estamos de olho em você”, lê-se num deles. “Antifa”, caso você esteja curioso, é uma abreviação de antifascista.

Tias andam com cartazes perguntando “por que não mataram todos em 1964?” e os passantes oferecem um copo d’água. Tá tudo liberado.

Mais uma vez, ouça o bom conselho da jornalista alemã Anja Reschke, que denunciou a resposta tímida da sociedade diante dessa loucura crescente: “Você deve se fazer ouvir, se opor, tomar uma atitude, abrir a boca”.

Deve. Ainda que não dê em nada.

Texto replicado : CARTA MAIOR

terça-feira, 22 de setembro de 2015

O GARROTE VIL DA CHANTAGEM E DOS JUROS


(Jornal do Brasil) - Pressionada, ainda antes de sua vitória nas urnas, pela oposição, o discurso neoliberal de enxugamento do Estado, e pelos erros - em princípio bem intencionados - cometidos nas desonerações, durante seu primeiro mandato, a Presidente Dilma Roussef fez mal em trocar a equipe econômica, e, de olho nas agências internacionais de "qualificação", ter cedido à chantagem do "mercado", colocando banqueiros para cuidar da economia brasileira, seguindo a receita ortodoxa de mais juros e mais arrocho, sob o mal disfarçado rótulo de "ajuste".

O campo neoliberal, dogmático e entreguista, e o sistema financeiro internacional, decidido e determinado a fazer com que o Brasil se submeta novamente, de corpo inteiro, a seus ditames, hipócritas e autoritários, agem como o lobo no cerco ao pobre cordeiro da fábula de La Fontaine. 

De nada adiantou o Brasil ter abaixado a cabeça e tentado fazer o "dever de casa", comprometendo-se a promover o "ajuste" e aumentando os juros. O rebaixamento - sórdido e imbecil aplicado por uma empresa multada em mais de um bilhão de dólares por ter enganado investidores, profissional e moralmente descreditada no exterior, entre outras personalidades, pelo Prêmio Nobel de Economia, Paul Krugman, que já chamou de palhaços seus analistas - veio do mesmo jeito, no bojo da estratégia geral de paulatino, lento "sangramento" do atual governo, por meio da Standard & Poors.

Agora, segue o baile, com o país paralisado, por causa da previsão de um ridículo déficit de 30 bilhões de reais no orçamento, que poderia ser de 60 ou 90 bilhões, que ainda assim não chegaria sequer a 10% de nossas reservas internacionais e o governo continua deixando que a imprensa e a oposição, dentro e fora do Congresso, ditem a pauta nacional, apedrejando o "aumento" dos impostos sobre o "povo", de um lado, com a CPMF, ao mesmo tempo em que impedem, com a outra mão, o aumento da taxação sobre os bancos, que estão - vide seus lucros - deitando e rolando com o constante aumento dos juros, principalmente, os da taxa SELIC.

Ora, o que o governo tinha que fazer é dizer que vai tirar 10 ou 20 bilhões de dólares das reservas internacionais, de 370 bilhões de dólares, acumuladas nos últimos anos, para cobrir esse suposto "buraco", cuja importância a imprensa conservadora tem multiplicado, já que significa uma quantia simbólica perto do PIB de mais de 2 trilhões de dólares (no ano passado alcançou 2.345 trilhões de dólares).

Ele poderia também suspender a proposta de imposto sobre a CPMF - que a população acha, erroneamente, que vai sangrá-la, quando ele é quase simbólico e facilitaria o combate à sonegação e à lavagem de dinheiro - taxando imediatamente os bancos, para aumentar a arrecadação, sem mexer no bolso do contribuinte, usando o Banco do Brasil e a Caixa Econômica Federal para evitar a explosão das tarifas.

E colocar os empresários da área produtiva, a FIERJ e a FIESP, para conversar com o Banco Central (leia-se COPOM) para baixar, paulatinamente, os juros, aliviando a situação fiscal do governo e revertendo psicologicamente a percepção exagerada de crise e de recessão promovida pela mídia conservadora, já que a queda recente da inflação, principalmente de alimentos, permite isso.

Isso, sem mexer no câmbio, cuja trajetória vem valorizando as reservas internacionais com relação ao real, diminuindo a dívida líquida pública, e reativando setores industriais de uso intensivo de mão de obra, que estão voltando a exportar. 
Se o Brasil estivesse quebrado e sem saída, tudo bem. 
Mas temos mais de um trilhão de reais em dólares, as sextas maiores reservas do mundo, e somos, depois da China e do Japão, o terceiro maior credor individual externo dos Estados Unidos, números que - devido à proverbial incompetência do governo na área de comunicação, além da blindagem dos grandes meios de comunicação - continuam fora do alcance da percepção e do conhecimento da imensa maioria do povo brasileiro. 
Em uma situação de cruenta guerra política, e, principalmente, ideológica, como é o momento, com o avanço do fascismo nas ruas e na internet, não há, para qualquer governo, pior tática do que abandonar seus princípios para ceder paulatinamente à pressão do adversário, na esperança de que essa pressão se alivie. 
Até porque ela só tende a piorar cada vez mais, sadicamente - como o aperto implacável e constante, ininterrupto, do Garrote Vil, volta a volta do torniquete, no pescoço dos prisioneiros, pelas mãos dos carrascos na Espanha, nos tempos da ditadura de Franco. 

Texto original: MAURO SANTAYANA

quinta-feira, 17 de setembro de 2015

A funesta Ideologia da Tesoura


Por Alexandre Pilati, no site Outras Palavras:

Não sem alguma facilidade, os setores conservadores que comandam a sociedade global, através de dolente mantra numerológico, vão conseguindo fazer colar nas cabeças dos setores médios brasileiros a ideia de que a crise econômica atual só se vencerá com uma bela e grande tesoura, que ataque os gastos “escabrosos” do governo federal.

Mais uma vez trata-se da boa e velha fabricação de consenso em torno de algo que, a partir de uma constatação real, sustenta-se quase que miticamente como única saída, cujo endereço de classe, entretanto, como bem sabemos, é bastante definido. É mirar e ver: nas últimas semanas, a fabricação de consenso em torno da tesoura como saída única e necessária para a crise econômica passa-se à fabricação de consentimento. “Nada de política; a pura matemática nos vai tirar do abismo.” Será?

O transporte passa a ser direito humano fundamental social

Nem só de más notícias, portanto, o Brasil está vivendo, embora a maior parte da mídia não dê atenção maior para as boas.

Jacques Távora Alfonsin

O direito ao transporte vai integrar o artigo 6º da Constituição Federal, como direito humano fundamental social, junto a todos os outros lá previstos, como educação, saúde, alimentação, trabalho, moradia, lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade e à infância e assistência aos desamparados.

Uma PEC (projeto de emenda constitucional) número 74/2013, de autoria da deputada Luiza Erundina, foi votada e aprovada no Senado, dia 9 deste setembro, e prevê-se a sua promulgação nesta semana, em sessão solene da mesma Casa Legislativa.

A notícia veiculada no site do Senado, foi também publicada no da Agência Brasil, nessa lendo-se o seguinte:

“A proposta foi apresentada em 2011, mas só avançou após as manifestações populares que ocorreram no país em junho de 2013. À época, um dos alvos dos protestos foi o transporte público. Na prática, segundo Erundina, a mudança no texto da Constituição abre caminho, por exemplo, para a proposição de outras leis para destinação de recursos ao setor de transportes, como ocorre em outras áreas.

“Saúde e educação, por exemplo, têm recursos vinculados orçamentariamente. Com isso, a União, os municípios e estados não podem deixar de destinar um percentual específico em lei para essas áreas. No caso do transporte, reconhecido como direito social pela Constituição, pode acontecer o mesmo, já que o novo texto gera um direito que o Estado é obrigado a atender, por meio de uma política pública que o assegure a todos os cidadãos”, explicou a deputada.”

Nem só de más notícias, portanto, o Brasil está vivendo, embora a maior parte da mídia não dê atenção maior para essa. Movimentos populares a ONGs defensoras dos direitos humanos sociais sabem que a injustiça social não tira férias e esses direitos estão sob permanente oposição político-jurídica.

É pouco provável que a PEC 74, apresentada em 2011, continuasse trancada em seu andamento congressual, se não tivesse havido, como informa a mesma notícia, a movimentação popular de 2013.

Essa é uma característica de todas as conquistas dos direitos sociais. O seu reconhecimento em lei sofre sempre de um parto prolongado e muito doloroso; mal nascida a lei, ela já começa a ser posta em dúvida sobre sua validade e eficácia, como a mesma notícia dá conta.

Tem-se explicado juridicamente o fato sob a justificativa (?) dessa espécie de direitos, por dependerem de ação do Poder Público, sempre ficarem sujeitos à sua própria “progressividade”, como se a sua previsão devesse servir sempre, e apenas, para o primeiro passo de uma caminhada que nunca se sabe bem quando e como vai começar.

Analisadas algumas emendas da nossa Constituição, desde sua promulgação em 1988, e alguns projetos de lei atualmente tramitando no Congresso Nacional, a nação pode e deve questionar se, em vez da referida progressividade, não houve infringência do princípio de direito próprio dos Estados democráticos de não permissão do chamado retrocesso social.

A licença para ampliar a possibilidade de se terceirizar o trabalho, de se reconhecer responsabilidade penal para pessoas com dezesseis anos, de se eliminar a obrigatoriedade de a rotulagem de mercadorias contendo transgênicos advertirem compradoras/es sobre isso, dão exemplo de projetos em vias de se transformar em lei, todos pondo em risco direitos humanos fundamentais.

A PEC 74 tem objetivo muito diferente desses outros. Enquanto o da terceirização e da rotulagem amplia os poderes econômicos das empresas, o primeiro livrando-as de obrigações trabalhistas, facilitando o caminho do desemprego, o segundo agride a saúde de consumidoras/es, escondendo os efeitos danosos capazes de serem desencadeados pela venda de produtos contendo transgênicos. O da responsabilidade penal estendida praticamente a crianças, como estão advertindo psiquiatras e especialistas em segurança pública, além de ineficaz para diminuir a criminalidade, vai aprimorar as escolas de crime das nossas prisões.

Talvez por essas razões, a deputada Luiza Erundina, conhecedora das manobras regimentais utilizadas no Congresso para acelerar projetos de lei como esses e trancar aqueles que defendem direitos humanos, já tratou de armar previamente a efetividade legal da PEC, chamando a atenção para a necessidade de se dar prosseguimento à pressão política por meio de novas leis, garantes de recursos próprios para a mesma se refletir, na prática do dia a dia das/os brasileiras/os.

Apontou os percentuais em dinheiro legalmente previstos como obrigatórios, por exemplo, para serem aplicados em saúde e educação, como uma forma válida de ser aproveitada também pelo direito ao transporte. A/o doente necessita deste para chegar ao hospital, a/o estudante precisa deste para chegar à escola, o povo todo precisa deste para chegar ao trabalho, ao retorno para a casa, ao lazer.

Que o direito ao transporte, enfim, agora consagrado nessa nova PEC aumente, também pelos seus efeitos indiretos em conforto e segurança a serem implementados em veículos, ruas e estradas, as nossas chances de alcançar uma convivência própria de uma “sociedade fraterna” como a prevista no preâmbulo da nossa Constituição Federal.

Texto original: CARTA MAIOR

domingo, 13 de setembro de 2015

A massificação da ideologia dominante

Por Róber Iturriet Avila, no site Brasil Debate:

O período vivenciado entre 2004 e 2011 foi de ganhos econômicos e sociais para o Brasil. Houve crescimento econômico superior à média das duas décadas pregressas, redução das desigualdades, elevação das reservas internacionais, aumento do emprego, elevação da renda média etc.

No final de 2011 e ao longo de 2012, frente à popularidade elevada da presidente Dilma e das oscilações na economia internacional, houve uma tentativa de alterar a política econômica, particularmente a política monetária. Nesse período, a sensação de “bem- estar” estava relativamente bem sedimentada.

Inesperadamente, uma ruptura no clima social se estabelece com as jornadas de junho de 2013. O movimento popular buscava melhorias nos serviços públicos. Mesmo que em seu surgimento as manifestações tenham sido organizadas por grupos de esquerda, os setores liberais e conservadores foram perspicazes em cooptar o sentimento que o movimento de rua trazia.

Desde então, é transpassado nas entrelinhas que as circunstâncias são negativas, ainda que concretamente nada tivesse se alterado de forma substancial até então, a não ser a redução do ritmo da atividade econômica. Nos principais meios de imprensa, o enfoque em problemas pontuais era destacado sem uma análise ampla sobre as questões.

Em linha semelhante, a organização da Copa do Mundo no Brasil em 2014 obteve uma crítica sistemática, seja de grupos sociais, seja dos veículos de comunicação. Ainda que os custos da Copa fossem ínfimos ao lado do que se gasta com serviços públicos, a lógica de senso comum, ou seja, sem base em elementos científicos, afirmava a existência de ineficiência na gestão pública, desperdício e, adjacentemente, descrédito com os políticos. Cumpre frisar que a organização da Copa foi bem-sucedida.

Esses dois momentos marcaram inflexões na percepção pública: as jornadas de junho de 2013 e a realização da Copa do Mundo em 2014. Tais situações foram sucedidas por uma enxurrada de análises pobres, desqualificadas e de senso comum. A despeito do baixo nível analítico, esse prisma se torna majoritário e se dissemina.

Há, assim, uma difusão de pessimismo sobre a situação do País, pouco baseada em evidências quantitativas, mas que hegemoniza a “opinião pública”. Paralelamente a essas ocorrências, o julgamento do “mensalão” (2012) e a “Operação Lava Jato” (2014) cristalizam a perspectiva equivocada de que os impostos são majoritariamente desviados e a saída para tal problema está na redução das atividades estatais.

O discurso vulgar e despolitizado “contra a corrupção” é meramente um artifício ideológico para instituir um projeto político com uma determinada visão sobre a sociedade e sobre a economia. Trata-se de uma visão falaciosa que generaliza casos pontuais, ignora e/ou naturaliza a ação estatal na distribuição da renda, sobretudo por meio de serviços públicos.

Ao contrário do que se imagina corriqueiramente, serviços públicos como educação, saúde e previdência são recentes em termos históricos, custam caro e trazem benefícios não tão visíveis como a redução da mortalidade infantil e a ampliação da expectativa de vida.

Do total da carga tributária do Brasil, 35,8% em 2012, por exemplo, 3,84 pontos percentuais foram destinados para a saúde (BRASIL, 2015a), 6,0 pontos percentuais foram para educação (INEP, 2015).

A previdência é centralizada no Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS), porém existem também organismos estaduais e municipais. Considerando apenas o INSS, o gasto em percentual do PIB é de 7,7 (BRASIL, 2015b). A soma dessas três rubricas perfaz 17,54% do PIB, o que representa 49,0% da arrecadação. Os juros nominais despendidos pelo setor público, em 2012, foram de 4,9% do PIB.

Ao lado dos argumentos vulgares acerca da carga tributária brasileira, há comparações com os serviços públicos de outros países com renda per capita muito superior à brasileira. Ou seja, o discurso de senso comum que visa a deslegitimar o Estado ignora a história do país e a realidade socioeconômica.

A história mostra que a redução da ação estatal aprofunda desigualdades, amplifica conflitos e tenciona a sociedade. Piketty (2014) explicitou sobretudo o primeiro ponto. Ao mesmo tempo, um Estado menor atende a interesses específicos, vale citar, há um segmento social que não precisa de saúde, educação e previdência públicas.

Parece ser um dos desafios do campo progressista atualmente desnaturalizar a ação do Estado por meio do resgate histórico de sua configuração, desobscurecer seus benefícios e qualificar o rebaixado debate de “ineficiência generalizada”.


Referências


BRASIL. Ministério da Saúde. Financiamento Público de saúde. Brasília: Ministério da Saúde, 2013. Disponível emhttp://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/financiamento_publico_saude_eixo_1.pdf. Acesso em 01 jul. 2015a.

BRASIL. Ministério da Previdência Social. Dados Abertos – Previdência Social –http://www.previdencia.gov.br/wp-content/uploads/2015/03/AEPS-2013-v.-26.02.pdf. Acesso em 24 ago. 2015b.

INSTITUTO NACIONAL DE ESTUDOS E PESQUISAS EDUCACIONAIS ANÍSIO TEIXEIRA (INEP). Investimentos públicos em educação. Disponível em http://portal.inep.gov.br/web/guest/estatisticas-gastoseducacao-indicadores_financeiros-p.t.i._nivel_ensino.htm. Acesso em 01 jul 2015.

PIKETTY, Thomas. Capital in the twenty-first century.Londres: The Belknap press of Harvard University press, 2014.


Texto original: BLOG DO MIRO

quinta-feira, 10 de setembro de 2015

6 ideias para que os super-ricos paguem a conta

Prestem atenção em 100 mil contribuintes. Se conseguir que eles percam as isenções escandalosas que têm, teríamos mais dinheiro do que com os ajustes.

Por Reginaldo Moraes, no site Brasil Debate

Faz alguns anos, a Receita Federal divulga os grandes números das declarações de renda. Neste ano, divulgou dados que nunca divulgara. E com isso ficamos sabendo, número por número, coisas estarrecedoras que só podíamos deduzir, observando o comportamento de nossos ricaços. Veja alguns destaques:

Quantas pessoas físicas fazem declaração?

Quase 27 milhões.

Qual é o “andar de baixo”?

Os 13,5 milhões que ganham até 5 salários mínimos. Se deixassem de pagar IR, a perda seria de mais ou menos 1% do total arrecadado pela receita. Só. E gastariam esse dinheiro, provavelmente, em alimento, roupa, escola, algum “luxo popular”.

Quais são os andares de cima?

São três andares:

1. Os que ganham entre 20 e 40 salários mínimos. Correspondem a mais ou menos 1% da população economicamente ativa. Podem ter algum luxo, pelos padrões brasileiros. Mas pagam bastante imposto.

2. Tem um andar mais alto. Os que ganham entre 40 e 160 SM representam mais ou menos 0,5% da população ativa. Já sobra algum para comprar deputados (ou juízes).

3. E tem um andar “de cobertura”, o andar da diretoria, da chefia. A nata. A faixa dos que estão acima dos 160 SM por mês. São 71.440 pessoas, que absorveram R$ 298 bilhões em 2013, o que correspondia a 14% da renda total das declarações. A renda anual média individual desse grupo foi de mais de R$ 4 milhões. Eles representam apenas 0,05% da população economicamente ativa e 0,3% dos declarantes do imposto de renda. Esse estrato possui um patrimônio de R$ 1,2 trilhão, 22,7% de toda a riqueza declarada por todos os contribuintes em bens e ativos financeiros. Pode estar certo de que são estes que decidem quem deve ter campanha financiada. Podem comprar candidatos e, também, claro, sentenças de juízes.

Quem sustenta o circo? Quem mais paga IR?

A faixa que mais paga é a do declarante com renda entre 20 e 40 salários mínimos, que se pode chamar de classe média ou classe média alta.

Quem escapa do leão?

O topo da pirâmide, o grupo que tem renda mensal superior a 160 salários mínimos (R$ 126 mil). As classes média e média alta pagam mais IR do que os verdadeiramente ricos.

Em 2013, desses 72 mil super-ricos brasileiros, 52 mil receberam lucros e dividendos – rendimentos isentos. Dois terços do que eles ganham sequer é taxado. São vacinados contra imposto. Tudo na lei, acredite. A maior parte do rendimento desses ricos é classificada como não tributado ou com tributação exclusiva, isto é tributado apenas com o percentual da fonte, como os rendimentos de aplicações financeiras.

Em 2013, do total de rendimentos desses ricaços, apenas 35% foram tributados pelo Imposto de renda pessoa física. Na faixa dos que recebem de 3 a 5 salários, por exemplo, mais de 90% da renda foi alvo de pagamento de imposto. Em resumo: a lei decidiu que salário do trabalhador paga imposto, lucro do bilionário não paga.

O que isso exige da ação política?

Quando a classe trabalhadora e suas organizações se enfraquecem, burocratizam ou recuam, deixam a ideologia e os sentimentos da classe média sob o comando da classe capitalista. Mais ainda, da sua ala mais reacionária. Pior ainda: a direita conquista até mesmo o coração dos trabalhadores que são tentados a se imaginar como “classe média”.

Na história do século 20, o resultado disso foi a experiência do fascismo, em suas múltiplas formas e aparições.

Nos últimos anos, os bilionários brasileiros e seus cães de guarda na mídia perceberam que podiam conquistar o ressentimento da classe média para jogá-la contra os pobres, os nordestinos, os negros, tudo, enfim, que se aproximasse dos grupos sociais que fossem alvo de políticas compensatórias, de redistribuição. E contra governos e partidos que tomassem essa causa.

E a esquerda, de certo modo, assistiu a essa conquista ideológica sem ter resposta. Uma resposta política: a criação de movimentos reformadores que fizessem o movimento inverso, isto é, colocassem essa classe média contra os altos andares da riqueza. Nós não soubemos fazer isso. Talvez pior: acho que nem tentamos fazer isso.

Aparece agora essa urgente necessidade e a providência divina, travestida de Receita Federal, nos traz uma nova chance.

Já sabíamos que os brasileiros mais pobres pagam mais impostos, diretos e indiretos, do que os brasileiros mais ricos. Sabemos que todos pagamos imposto sobre propriedade territorial urbana – o famoso IPTU. E conhecemos o estardalhaço que surge quando se fala em taxar mais os imóveis em bairros mais ricos.

Mas sabemos coisa pior: grandes proprietários de imóveis rurais não pagam quase nada. Sobre isso não tem estardalhaço. É assim: se você, membro da “classe média empreendedora” passeante da Avenida Paulista, tem uma loja, oficina ou restaurante de self service, paga um belo IPTU. Se você fosse um grande proprietário rural (como os bancos e as empresas de comunicação), seu mar de terras com uma dúzia de vacas não pagaria ITR. Ah, sim, teria crédito barato.

Tudo isso já é mais ou menos sabido e merece reforma. Mas ainda mais chocante é o que se chama de “imposto progressivo sobre a renda”, que agora sabemos que é ainda menos progressivo do que imaginávamos.

Faz algum tempo escrevi um artigo dizendo que a Receita Federal deveria concentrar sua fiscalização na última faixa dos declarantes pessoa física, responsável por 90% do IR. Se o resto simplesmente deixar de pagar não vai fazer tanta diferença. Além disso, a faixa mais alta é aquela que menos recolhe na fonte e a que mais tem “rendimentos não tributáveis” e de “tributação exclusiva”, isto é, rendimentos derivados de investimentos, não de pagamento do trabalho.

Fui injusto ou impreciso, moderado demais. A Receita e os legisladores podem economizar mais tempo do que eu supunha. Basta que prestem atenção em 100 mil contribuintes, do total de 26 milhões. Essa é a mina. Se conseguir que eles paguem o que devem e se conseguir que eles percam as isenções escandalosas que têm, posso apostar que teremos mais dinheiro do que os ajustes desastrados e recessivos do senhor ministro da Fazenda.

O que isso significa para o que chamamos de esquerda – partidos, sindicatos, movimentos sociais? Sugiro pensar em um movimento unificado com uma bandeira simples: que esses 100 mil ricaços paguem mais impostos e que deem sua “contribuição solidária” para reduzir a carga fiscal de quem trabalha. É preciso traduzir essa ideia numa palavra de ordem clara, curta e precisa, mobilizadora. E traduzi-la numa proposta simples e clara de reforma, cobrada do governo e do Congresso. A ideia é simples: isenção para os pobres, redução para a classe média, mais impostos para os ricaços.

Talvez essa seja uma boa ideia para fazer com que a “classe média” que atira nos pobres passe a pensar melhor em quem deve ser o alvo da ira santa. Afinal, milhares e milhares de pagadores de impostos foram para as ruas, raivosos, em agosto, enquanto os nababos que de fato os comandam ficavam em seus retiros bebendo champanhe subsidiada.

Os passeadores da Avenida Paulista são figurantes da peça, eles não sabem das coisas – os roteiristas e produtores nem deram as caras.

Em que rumo os partidos e movimentos populares devem exigir mudanças?

1. É justo e perfeitamente possível isentar todo aquele que ganha até 10 salários mínimos. Não abala a arrecadação se cobrar um pouco mais dos de cima.

2. É necessário e legítimo criar faixas mais pesadas para os andares mais altos. Mas não é suficiente.

3. É preciso mudar as regras que permitem isenção e desconto para lucros e dividendos.

4. É preciso e é legítimo mudar as regras para os pagamentos disfarçados, não tributáveis, em “benefícios indiretos”. A regra tem sido um meio de burlar a taxação.

5. É preciso e é legítimo mudar as regras de imposto sobre a propriedade territorial. A classe média estrila com o IPTU. Mas deveria é exigir cobrança do ITR.

6. É preciso ter um imposto sobre heranças. Com isenção para pequenos valores e tabela progressiva.

Texto original : CARTA MAIOR

segunda-feira, 7 de setembro de 2015

Quem é responsável pela crise de refugiados na Europa?

A crise é o trágico subproduto de uma política criminosa de guerras e de intervenções para mudança de regime, implementadas pelos EUA e pela Europa.

Bill Van Auken - Global Research

As imagens angustiantes do menino sírio de três anos de idade, primeiro deitado de barriga para baixo, morto, na areia de uma praia turca, em seguida o corpo sem vida embalado por um agente de salvamento, parecem ter aberto os olhos do mundo para a desesperadora crise que tem acontecido diariamente nas fronteiras da Europa.

A família do menino, que se chamava Alan Kurdi, vinha de Kobani, fugindo junto com centenas de milhares de outros sírios. O cerco prolongado do Estado Islâmico do Iraque e da Síria (ISIS) e uma intensa campanha de bombardeios dos Estados Unidos deixou a cidade no norte da Síria em ruínas: casas, sistema de abastecimento de água, eletricidade, saneamento e infraestrutura médica, tudo foi destruído. O menino, sua mãe e seu irmão de cinco anos estavam entre os 12 sírios que se afogaram na tentativa de chegar à Grécia. Destruído psicologicamente, seu pai, o único sobrevivente da família, disse que voltaria para a Síria com os corpos, tendo afirmado a parentes que gostaria de morrer e ser enterrado ao lado deles.

Há muitos culpados por essas mortes, que são apenas algumas das milhares de pessoas que perderam as vidas tentando atravessar o Mediterrâneo ou morreram sufocadas após se espremer em vans como sardinhas.

O Governo do Canadá ignorou o pedido feito em junho pela tia do menino, que vive na Columbia Britânica, para conceder asilo à família de Alan.

Os países da União Europeia têm tratado a onda de refugiados com repressão e dissuasão, construindo novas cercas, criando verdadeiros campos de concentração e mobilizando a polícia de choque, para erguer uma Europa fortificada, para manter bem longe famílias desesperadas como a de Alan mesmo que seja preciso condenar milhares e milhares à morte.

E os EUA? Os políticos e a mídia americana continuam convenientemente mudos sobre o papel central de Washington na criação desta tragédia que assistimos em diversas fronteiras da Europa.

O Washington Post, por exemplo, publicou um editorial no início da semana afirmando que “não se pode esperar que a Europa consiga resolver sozinha um problema originado no Afeganistão, no Sudão, na Líbia e, acima de tudo, na Síria”. O New York Times usou o mesmo raciocínio, escrevendo: “As raízes desta catástrofe estão em crises que a União Europeia não pode resolver sozinha: as guerras na Síria e no Iraque, o caos na Líbia...”

Quais são, por sua vez, as "raízes" das crises nestes países, que deram origem a esta "catástrofe"? A resposta a esta pergunta é apenas um retumbante silêncio.

Qualquer consideração séria do que está por trás da onda de refugiados dirigindo-se para a Europa leva à conclusão inevitável de que se trata não apenas de uma tragédia, mas de um crime. Mais precisamente, a crise é o trágico subproduto de uma política criminosa de guerras e de intervenções para mudança de regime, implementadas sistematicamente pelo imperialismo norte-americano com a ajuda e a cumplicidade de seus aliados da Europa Ocidental ao longo de quase 25 anos.

Com a dissolução da União Soviética, em 1991, a elite governante dos EUA concluiu que estava livre para explorar o incomparável poderio militar do país como forma de compensar o processo de declínio econômico do capitalismo americano. Por meio de agressão militar, Washington embarcou na estratégia de estabelecer sua hegemonia sobre os principais mercados e fontes de matérias-primas, começando pelas regiões ricas em energia do Oriente Médio e da Ásia Central.

A estratégia foi resumida de forma simplificada numa frase do Wall Street Journal, logo após a primeira guerra contra o Iraque, em 1991: "O uso da força funciona".

O que o mundo testemunha hoje, com os milhares de refugiados desesperados na tentativa de chegar à Europa, é efeito desta política, mantida desde então.

Em mais de uma década, as guerras do Afeganistão e do Iraque, travadas com o pretexto de serem "contra o terrorismo", e justificadas com mentiras infames sobre "armas iraquianas de destruição em massa", só foram capazes de devastar sociedades inteiras, matando centenas de milhares de homens, mulheres e crianças.

A estas guerras seguiu-se a guerra por mudança de regime – liderada pelos EUA e OTAN – que derrubou o governo de Muammar Gaddafi e transformou a Líbia em um arremedo de país, arruinado pela luta contínua entre milícias rivais. Então veio a guerra civil síria – alimentada, armada e financiada pelo imperialismo norte-americano e seus aliados, com o objetivo de derrubar Bashar Al-Assad e substituí-lo por um fantoche obediente às ordens ocidentais.

As intervenções predatórias na Líbia e na Síria foram feitas em nome dos "direitos humanos" e da "democracia", recebendo o apoio de uma série de organizações de pseudo-esquerda que representam camadas privilegiadas da classe média – o Partido da Esquerda, na Alemanha, o Novo Partido Anticapitalista (NPA), na França, a Organização Internacional Socialista, nos EUA, entre outros. Alguns chegaram a saudar as ações de milícias islamistas armadas e financiadas pela CIA e chamá-las de "revoluções".

A situação atual e a pressão insuportável de morte e destruição que leva centenas de milhares de pessoas à fuga desesperada e fatal representam a confluência de todos estes crimes do imperialismo. A ascensão do ISIS e as guerras civis sectárias e sangrentas em curso no Iraque e na Síria são o produto da devastação do Iraque pelos EUA, seguida do apoio da CIA e dos aliados regionais do imperialismo americano ao ISIS e às milícias islamistas semelhantes na Síria.

Ninguém foi responsabilizado por esses crimes. Bush, Cheney, Rumsfeld, Rice, Powell e outros do Governo Bush, que travaram uma guerra de agressão no Iraque com base em mentiras continuam totalmente impunes. No Governo atual, de Obama para baixo, ainda precisam dar explicações pelas catástrofes que desencadearam na Líbia e na Síria. Os cúmplices são muitos, do Congresso dos Estados Unidos, que tem atuado como um carneirinho no que diz respeito às políticas de guerra, a uma mídia chapa branca, que ajuda a legitimar perante o público americano guerras baseadas em mentiras, passando pelos pseudo-esquerdistas que atribuem um papel progressista ao imperialismo dos EUA e suas "intervenções humanitárias".

Juntos, são responsáveis %u20B%u20Bpelo que acontece hoje nas fronteiras da Europa, que deve ser visto, mais do que uma tragédia, como um prolongado e contínuo crime de guerra.

Tradução de Clarisse Meireles

Texto original: CARTA MAIOR