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domingo, 26 de julho de 2015

REVOLTA DA VACINA, OS RATOS E A MARSELHESA


“Pelo menos os colchões, Dr. Oswaldo... não queime os malditos colchões”
Suado diante dos dias quentes daquele final de primavera de 1904, e exasperado pela situação nas ruas, o Presidente Rodrigues Alves olhava para aquele médico a quem confiara a missão estratégica de combate à febre amarela, com olhos angustiados. Será que esse sanitarista genial e maluco, que descobrira e isolara o vírus da febre amarela, criando sua vacina, e que perseguia os ratos (o povo o chamava de “papa ratos”) não entendia que, para muitos cariocas o colchão que suas tropas incendiavam era único e queimá-lo provocava o rancor e a fúria?

Não, Oswaldo Cruz não entendia.

Para ele, saúde se fazia em campanha nos moldes militares. Campanha de Guerra.

Se o maldito vírus se escondia entre os farrapos dos quais os pobres escondiam seus corpos, ou nos colchões onde dormiam, a missão da campanha era simples: queimar os colchões, abater os ratos e mosquitos à tiros, e não podendo abater também os pobres, ao menos obrigá-los à vacinação.
No Brasil do início do século XX saúde era tratada como um fim político. Nem pensar em esclarecer os pobres. Eles estavam até sendo vacinados, para quê seriam necessários esclarecimentos?

Por isso, a resposta do Dr. Oswaldo foi um olhar indolente de quem entendia que tanto zelo do presidente da República, devia-se apenas ao fato da imagem do Brasil (e de seu governo) ser ridicularizada na Europa. Imagina, empresas de turismo chegavam a prometer em grandes cartazes de propaganda, levar seus fregueses à Buenos Aires sem passar pelos focos contaminados do Rio de Janeiro.

Mas enganavam-se ambos, médico e presidente ao diminuir as causas da revolta, caracterizando-a como algo esporádico e despolitizado.

A situação do Rio de Janeiro, no início do século XX, era precária. A população sofria com a falta de um sistema eficiente de saneamento básico. Este fato desencadeava constantes epidemias, entre elas, febre amarela, peste bubônica e varíola. A população de baixa renda, que morava em habitações precárias, era a principal vítima deste contexto.

Para piorar, Rodrigues Alves decidira urbanizar a capital do país, que deveria começar a ser a “cidade maravilhosa” e para isso velhas ruas foram alargadas, enquanto novas vias públicas invadiam bairros e vielas.
Adivinha quem teve suas casas desapropriadas (sem pagamento) e expulsos das áreas mais antigas de habitação? Isso mesmo, os pobres, gente que nem médico nem presidente conheciam muito bem.

Entre os dias 10 e 16 de novembro de 1904, explodiu no Rio de Janeiro a Revolta da Vacina.

A parte mais pobre do povo desceu os morros, convicta da justiça de suas reivindicações, influenciada pelas conversas apaixonadas que rolavam no Boteco do Manduca, o mais popular Boteco da favela. O Manduca, analfabeto, mas bem informado e idealista, chegara a desfraldar uma bandeira da França na frente de seu estabelecimento, e juntos, emocionados pelo fervor do idealismo e da cachaça, botequeiro e freguesia cantaram a Marselhesa.

Povo e polícia se engalfinharam de forma violenta. Populares destruíram bondes, apedrejaram prédios públicos e espalham a desordem pela cidade.
Nos sete dias de revolta, muitas vezes Manduca promoveria o mesmo ato simbólico.

Juntos, aquele povo de um só colchão, que entendia de ratos de um jeito diferente do Dr. Oswaldo Cruz, aquele povo miserável, promoveria uma inacreditável união de esforços para por fim à campanha militar/sanitária desencadeada por um governo distante e mais preocupado com sua imagem e suas ruas alargadas.

Finalmente, em 16 de novembro de 1904, o presidente Rodrigues Alves, fazendeiro paulista que acabaria morrendo, ironicamente, vítima de uma epidemia (Gripe Espanhola, em 1918), revoga a lei da vacinação obrigatória.

A Revolta da Vacina talvez nunca tenha sido vista pela história oficial com a profundidade merecida. Até hoje é ensinada nos colégios como um momento apolítico de um povo ingrato que sequer percebia a importância e os benefícios da vacinação.

Suas causas, seus revoltosos, e claro, seu Manduca, botequeiro que recitava o hino da França, entendendo ser esse um momento solene de liberdade, igualdade e fraternidade, mereciam, pelo menos, um olhar mais crítico,mais humano e reconhecido.


Formado em Ciências Sociais
 com licenciatura em história

terça-feira, 3 de setembro de 2013

“Superpotência moral”? Dá um tempo.

É impossível afirmar que os Estados Unidos, país responsável pela maior parte do derramamento de sangue desde a Segunda Guerra Mundial na Ásia, América do Sul, Afeganistão e Iraque, seja dirigido por considerações morais. O ataque a Síria seria um Iraque II. Os EUA – que nunca foram punidos pelas mentiras do Iraque I e pelas centenas de milhares de mortos em vão nessa guerra - dizem que uma guerra similar deveria ser lançada. Mais uma vez, uma cortina de fumaça. 
 

Por Gideon Levy.


Um exercício de honestidade (e de duplo padrão de julgamento): o que aconteceria se Israel usasse armas químicas? Os Estados Unidos também afirmariam que iriam atacar? E o que aconteceria se os Estados Unidos mesmo tomasse essas medidas? É verdade, Israel jamais usaria armas de destruição em massa, embora as tenha em seu arsenal, exceto sob circunstâncias extremas. Mas o país já usou armas proibidas pelo direito internacional – fósforo branco contra a população civil em Gaza, bombas de fragmentação no Líbano – e o mundo não levantaria o seu dedo. E seria preciso poucas palavras para descrever as armas de destruição em massa usadas pelos Estados Unidos, das bombas nucleares no Japão ao Napalm no Vietnã.

Mas a Síria, é claro, é um outro assunto. Afinal de contas, ninguém pode seriamente pensar que um ataque a Síria sob o regime do Presidente Bashar Assad repousa em considerações morais. 100 000 mortos nesse país infeliz não convenceram o mundo a se coçar para tomar uma atitude, e apenas o informe da morte de 1400 por armas químicas – o qual não foi provado de maneira conclusiva – está persuadindo o exército da salvação mundial a agir.

Tampouco alguém poderia suspeitar que a maioria dos israelenses que apoiam o ataque – 67% de acordo com a pesquisa encomendada pelo jornal Israel Hayom – são motivados pela preocupação com o bem estar dos cidadãos sírios. No provavelmente único país do mundo em que uma maioria da opinião pública apoia um ataque, o princípio que o orienta é completamente estrangeiro: ataque aos árabes; não importa por que, apenas o quanto – muito.

Ninguém pode seriamente pensar que os Estados Unidos é uma “superpotência moral”, como Ari Shavit o definiu nas páginas deste jornal O país responsável pelo maior derramamento de sangue desde a Segunda Guerra Mundial – alguns falam em algo como 8 milhões de mortos em suas mãos – no sudeste da Ásia, na América do Sul, Afeganistão e Iraque – não pode ser considerado “uma potência moral”. Nem o pode o país no qual um quarto dos prisioneiros do mundo estão encarcerados, em que o percentual de prisioneiros é maior do que na China e na Rússia; e onde 1342 pessoas foram executadas – cumprindo pena de morte – desde 1976.

Até a afirmação de Shavit, de que “A nova ordem internacional que emergiu após a Segunda Guerra Mundial foi pensada para assegurar...que o cenário de horror e morte por gás não se repetisse” está desconectado da realidade. Na Coréia, no Vietnã, no Camboja, em Ruanda e no Congo, assim como na Síria, essa afirmação infundada pode somente causar um sorriso azedo.

O ataque assim seria um Iraque II. Os Estados Unidos – que nunca foram punidos pelas mentiras do ataque Iraque I e pelas centenas de milhares de mortos em vão nessa guerra - dizem que uma guerra similar deveria ser lançada. Mais uma vez, uma cortina de fumaça, com evidência parcial, e com linhas vermelhas traçadas pelo próprio presidente Barack Obama, e agora ele é obrigado a manter a sua palavra. Na Síria, uma guerra civil cruel se aproxima e o mundo deve tentar barrá-la; o ataque americano não fará isso.

Informes da Síria são aparentemente sobretudo tendenciosos. Ninguém sabe o que exatamente está acontecendo, ou a identidade dos mocinhos e dos bandidos, se assim podem eles ser definidos.

Devíamos escutar as sábias palavras de uma freira da Síria, a Irmã Agnes-Mariam de la Croix, que se queixou para mim, ao longo do fim de semana – do mosteiro em Jerusalém onde ela estava ficando, a caminho de volta da Malásia para a Síria – a respeito da imprensa mundial. A Irmã Agnes – Mariam descreveu o quadro de maneira diferente da maior parte da imprensa. Há uns 150 000 jihadistas na Síria, ela diz, e eles são os responsáveis pela maior parte das atrocidades. O regime de Assad é o único que pode barrá-los, e a única coisa que o mundo deve fazer é parar de fornecer-lhes militantes e de armá-los. “Eu não entendo o que o mundo quer. Ajudar a Al-Qaeda? Criar um estado jihadista na Síria?”.

Essa madre superiora, cujo mosteiro está localizado numa via que vai de Damasco a Homs, está certa de que um ataque americano só fortalecerá os jihadistas. “É isso o que o mundo quer? Um outro Afeganistão?”.

Talvez o mundo saiba o que quer, talvez não. Mas uma coisa agora parece clara: um outro ataque dos Estados Unidos poderá se tornar um outro desastre.

Tradução: Katarina Peixoto

Texto copiado de : CARTA MAIOR