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sábado, 16 de maio de 2015

A pobreza sai às ruas nos EUA mais que no Brasil

Na meca do capitalismo, 45 milhões de pessoas vivem abaixo da linha da pobreza. Mas parece que os arautos do american way of life não querem ver.

José Carlos Peliano

Os críticos do país não usam óculos, resistem ou não querem ver direito, embora haja casos que merecem internação definitiva para recuperação ocular e mesmo cegueira. Não só da oposição política propriamente dita mas da midiática também. Enxergam qual país? Qual deles é o que vale?

Falar mal do país virou tônica diária dos oposicionistas. Como prato principal e sobremesa. Nem os cafezinhos nos intervalos do trabalho escapam. O país para eles afunda em corrupção e economia fraca, decadente.

Bom, mas disso tudo já sabíamos, infelizmente, desde o final do primeiro governo de Dilma. O pior é que não se cansaram, nem se cansam, querem ou ganhar no tapetão ou criar dificuldades diárias, permanentes, até secar as expectativas de aposta política e recuperação econômica.

Tentaram bandeiras, faixas, panelas, reportagens falsas, notícias mentirosas, denúncias sem provas, samba do crioulo doido como diria Stanislaw Ponte Preta nos idos dos anos 60. A baderna política na busca de perdurar imagens caricatas do governo eleito democraticamente.

O pior é que não só deturpam a realidade. Não enxergam como convém com nenhum dos olhos o que ocorre no país tampouco no vizinho que tanto adoram, onde mora o Tio Sam. Diria minha avó, para que enxergar direito se eles querem mesmo é ver errado?

Pois bem, enquanto já caem de pau sobre a performance do PIB brasileiro no 1o trimestre desse ano, com queda prevista de 0,5% em relação à leve alta de 0,1% no 3o trimestre de 2014, os EUA registraram queda de 0,2% diante de alta de 2,2% nos mesmos períodos (fonte: Federal Reserve, o banco central norte-americano).

Desaceleram ambas as economias, tendo sido o tombo mais acentuado nos EUA. O Brasil está pelo menos de farol baixo desde a 2a metade do ano passado por várias razões, inclusive pela pressão política dos empresários nacionais sobre a política econômica como tentativa de reversão do quadro sucessório.

A mesma fonte norte-americana de informação indica que ocorre naquele país um período de estagnação econômica após o curto surto de recuperação, ao qual se apegaram muitos países em dificuldades e que agora não sabem bem para onde caminhar. 

As exportações recuaram nos EUA, o que mostra a menor procura do setor externo: China em ritmo menor de crescimento, a Zona do Euro pior, às voltas com a austeridade, e os emergentes boiando meio que na expectativa. Já o consumo interno igualmente volta atrás, o que revela a atenuação dos ganhos de renda da população americana.

Guardadas as devidas e honrosas proporções, fenômeno semelhante ocorre no Brasil, apimentado ademais pela quadra difícil dos embates jurídicos com relação aos desvios na Petrobras, o resultado do pleito presidencial ainda atravessado na garganta da oposição e o ataque feroz e diário da mídia desde o ano passado. Qualquer economia sofreria o mesmo tranco.

O Bureau do Censo estadunidense informa que a população que vive abaixo do nível de pobreza de lá está em torno de 14,5% ou 45 milhões de pessoas. Como se pode imaginar que a meca do capitalismo moderno apresenta quadro tão alarmante de pobreza? Pois é o que ocorre, o que os arautos do american way of life não querem ver, se emudecem ou olham de revés.

No Brasil**, em fins de 2013, a população em estado de pobreza era de 8,8% e em estado de extrema pobreza 4%, ou 12,8% na soma, cerca de 26 milhões de pessoas. A comparação é imperfeita porque a renda limite de lá é bem superior, mas o que vale são as condições vigentes em cada país, quanto ao custo de vida, as necessidades básicas e as oportunidades de ascensão social.

Daí o tamanho da pobreza aqui ser pouco mais da metade dos EUA. Não adianta o contra-argumento de que no limite de lá caberiam muito mais brasileiros porque os ricos daqui igualmente não chegariam aos pés dos de lá. Tudo relativo.

A grande diferença, contudo, está no fato de que nos EUA o contingente pobre aumentou, enquanto aqui no país ele declina. De 2006 a 2014 nos EUA o nível de pobreza veio de 12,3% a 14,5%, sem falar no contingente de sem teto que aumenta cada vez mais nas ruas das metrópoles. Enquanto no Brasil vem de 22,6% a 12,8% no mesmo período. Isso mostra que a política econômica brasileira privilegiou a população mais necessitada, enquanto nos EUA o benefício ficou para os abastados.

Os bons reflexos da economia chegaram ao custo da cesta básica no país ajudando a recuperação da renda real dos pobres. A relação custo da cesta básica/valor do salário mínimo evoluiu de forma descendente desde dezembro de 1995 até dezembro 2014. De 91,5% a 44,9% em São Paulo e de 72,7% a 35,6% em Fortaleza.

A grande dificuldade de recuperação estadunidense em relação ao Brasil, no que se refere ao mercado interno, sem depender da evolução das transações com o exterior, é o fato de que a população trabalhadora de lá tem um peso mais acentuado para as condições do país.

Em tempos recentes a criação de empregos americanos tem sido nos setores urbanos de comércio e serviços, onde os salários são menores. Daí para que a economia se expanda há que se criar mais e novos empregos com salários maiores, o que vai exigir projetos de médio e longo prazos nos setores industriais e de alta tecnologia. Vai demandar tempo.

Aqui no Brasil nem tanto. Um reforço ao mercado interno vai consolidar o que já existe, especialmente em relação aos trabalhadores com menores salários. Com a expansão de projetos de infraestrutura o impulso fica por conta dos setores de bens de capital e intermediários, que geram valor e reproduzem mais oportunidades de negócios, renda e emprego através do chamado efeito multiplicador dos investimentos.

De onde virá o impulso gerador? O primeiro ministro chinês anunciou esta semana a intenção da China investir US$ 53 bilhões no país em infraestrutura, exatamente a área que o governo federal anunciou como prioritária para expansão de projetos. 

Além do banco dos BRICS com recursos para a mesma área e correlatas, que deve finalmente ser operacionalizado mês que vem em reunião na Rússia. Outros bilhões virão do Pré-Sal apesar da pressão de opositores que querem abrir o setor para a combalida economia americana.

Mas isso só será bem sucedido e em pouco tempo caso o ministro da Fazenda não segure mais e indevidamente as rédeas da economia brasileira. Outro da turma dos que precisam enxergar melhor o que se passa aqui e lá fora. 
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José Carlos Peliano é colaborador da Carta Maior.

**Dados do Brasil são de Vinte Anos de Economia Brasileira 1995/2014, Gerson Gomes e Carlos Antônio Silva da Cruz, Centro de Altos Estudos Brasil Século XXI.

Texto original: CARTA MAIOR

quarta-feira, 22 de abril de 2015

O império norte-americano apodrecendo por dentro

Em 1980, 50% dos estadunidenses pensavam que a próxima geração viveria pior que a sua. Hoje a cifra subiu para um assustador 80%.

Luis Matías López - público.es

Este artigo fala sobre como o império norte-americano está afundando, podre por dentro, mas estufando o peito e com uma enganosa aparência de boa saúde. Como na Trilogia USA, de John Dos Passos, cheio daquele aroma esquerdista das primeiras três décadas do Século XX, o livro Desagregação – Por Dentro de Uma Nova América, de George Packer, jornalista oriundo da escola do The New Yorker, fala dos trinta anos de lenta decadência ianque, com os momentos decisivos desse processo, a partir da crise do petróleo em 1973 (“o último ano da Década de 50”, segundo um dos personagens do libro). Naquele momento, os Estados Unidos submergiu numa crise existencial e de identidade, uma fratura interna cujo resgate requer mais que a simples recuperação econômica.

Se Dos Passos apresentava doze personagens de ficção representativos da realidade social da época (desde um tipógrafo, a uma empregada, um mecânico ou um jornalista e ativista), Packer expõe a experiência vital de um punhado de personagens reais. Através deles reflete as luzes e sombras de um país no divã do psiquiatra, fragmentado e dividido, das cidades sem alma e em processo de descomposição, cada vez mais dependente do veículo privado, sem redes de transporte que facilitem a integração e a atividade comunitária, com bairros arrasados pelo tsunami dos despejados desabrigados.

Trata-se de um país que, enquanto ostenta ainda a supremacia tecnológica e científica, poderá manter a liderança mundial, e dar lições de moralidade e democracia. Apesar disso, o país vai descobrindo que é mais desigual que nunca, discrimina seus cidadãos, rouba seu dinheiro e seus serviços essenciais, destrói a classe média, o tecido social com o que, durante muitas décadas, vestiu seu modelo de grandeza. Com uma analogia extrema, pode-se dizer que as opções hoje estão entre ganhar um milhão de dólares por ano ou nove dólares por hora trabalhando no Wal-Mart.

Packer expõe este lamentável panorama em Desagregações, mas sem o mesmo fôlego ideológico esquerdista de Dos Passos, deixando uma certa margem, para que nem todos os leitores tirem as mesmas conclusões, mas com uma eficácia similar. Seus personagens são parecidos e ao mesmo tempo diferentes dos da Trilogia USA. O fato de serem reais agrega um pouco mais de força como categoria. O livro segue suas rotinas através dos tempos, vê como eles evoluem, se derrubam e se levantam, enfrentam dificuldades, os vê confiar e se decepcionar com os políticos, a ilusão com projetos empresariais condenados ao fracasso, e também os casos excepcionais onde se faz realidade o individualista e quase nunca solidário sonho americano.

Gente comum, pode ser um jornalista cheio de ideais que vasculha a sujeira das hipotecas do subprime que destruíram milhões de famílias indefesas diante das entidades financeiras; uma operária negra, mãe solteira e filha de uma viciada em drogas, expulsa do mercado de trabalho pela crise da indústria metalúrgica, e que se transforma em ativista comunitária; um visionário empreendedor que combate a crise da gasolina cara (uma tragédia para o estilo de vida norte-americano, hoje contornada pela queda no preço do petróleo) desenvolvendo a produção de biodiesel, usando até mesmo óleo jogado fora pelos restaurantes; um magnata do Silicon Valley que se tornou rico com Facebook, PayPal e outros projetos tecnológicos, mas que logo vai às bordas da ruína e reclama das universidades que não ensinam como gerir uma empresa; um assessor político e lobista testemunha das misérias da política, mas que mantêm durante décadas uma lealdade a Joe Biden (atual vice-presidente) que não sintoniza com o perfil egoísta que se conhece dele; um magnata corresponsável pelo crash financeiro que, apesar de tudo, termina sendo Secretário do Tesouro do Governo Obama… e um Obama que representou a esperança quando foi eleito, mas que, a cada dia que passa, se revela mais parecido com outro presidente vendido (ou acolhido) pelos poderes fáticos, a começar pelo financeiro.

Não somente os cidadãos são personagens em Desagregação. As cidades também, e duas muito em particular: Youngstown (Ohio) e Tampa (Florida). A primeira foi sempre irrespirável, e não no sentido figurado, já que há anos as chaminés dos altos-fornos formam parte da paisagem urbana, e sujam o ambiente com suas pestilentes emanações. Ao mesmo tempo, esse veneno inevitável era o símbolo da prosperidade, garantia o pleno emprego e bons salários, dando aos habitantes a oportunidade de organizar suas vidas sem angústias materiais. Até que a crise veio e esvaziou muitos bairros, atingiu milhares de famílias que não podiam pagar hipotecas a preços irreais, multiplicou as cotas de delinquência e a proporção de pobres dependentes da assistência social, e forçou a uma diminuição da população de forma brutal e irreversível.

Algo parecido ocorreu em Tampa, embora essa região da Florida o impacto no desenvolvimento não foi na indústria metalúrgica, mas sim na do sol fonte de qualidade de vida que deveria atrair os endinheirados de todo o país, o que provocou uma descontrolada bolha imobiliária, com novos bairros se proliferando como fungos, os preços das propriedades dobrando de valor de um dia pro outro, onde quem não tinha onde cair morto embarcava na compra imobiliária em prestações, com a confiança de que em pouco tempo poderia vender e ganhar lucros fabulosos. Algo parecido ao que aconteceu na Espanha, mas numa escala ainda mais brutal. Porque a consequência foi uma epidemia de despejos. Quando a bolha estourou, o vazio destruiu as ilusões de milhares. O peso da falta de consciência, estimulada sem escrúpulos pelos especuladores, fez com que tantos sofressem um golpe do qual a maioria não conseguiria se recuperar jamais.

O sonho de Tampa era o de se transformar na “próxima grande cidade americana”, promovido inclusive com duas finais do Super Bowl e uma convenção do Partido Republicano, e não restou nada. Enquanto isso, a política, sempre a maldita política, e a emergência explosiva do Tea Party, impediam que surgissem projetos de regeneração da qualidade de vida para os cidadãos, como o de uma linha ferroviária urbana que reduzisse a dependência do automóvel privado, a reabilitação do centro como ponto de encontro dos moradores, para acabar com o isolamento dos bairros mais distantes, nascidos da péssima planificação urbanística e privados de serviços mais essenciais.

Assim como nos livros de John Dos Passos, Packer mescla as histórias individuais, fruto de centenas de entrevistas, com os retratos nem sempre condescendentes (e às vezes destrutivos) confeccionados a partir de fontes secundárias, de personagens conhecidos como o escritor Raymond Carver, o cronista da desesperança operária durante a Era Reagan, transformado em clássico moderno; o político republicano Newt Gingrich, personificação do conservadorismo mais reacionário; o empresário San Walton, dono do gigante das vendas baratas, criador do Wal-Mart, referência em termos de salários miseráveis e intolerância com os sindicatos; a apresentadora Oprah Winfrey, o rapper Jay-Z, o economista e Secretário do Tesouro Robert Rubin, a ativista Elisabeth Warren e a paladina da comida saudável e ecológica Alice Waters. Junto com eles, vários perdedores sem esperança de redenção, sempre na luta desesperada por conseguir uma assistência médica adequada, um covil onde se possa viver mal em troca de uns poucos dólares e ter o suficiente para comprar algumas roupas e dar de comer aos filhos, com a necessidade vez ou outra de ter que aceitar as humilhações da sempre insuficiente caridade pública ou privada.

Essa Desagregação, citada no título livro, trouxe paradoxalmente “muito mais liberdade”, segundo Packer. Liberdade de ganhar ou perder (“o esporte favorito dos norte-americanos”), para superar o fracasso e refazer a vida na terra das oportunidades, onde qualquer um pode chegar a ser presidente. Mas, sobretudo, liberdade para que te despeçam, te droguem, te levem à bancarrota, para que você fracasse, fique sozinho (a porcentagem de famílias de uma só pessoa é a mais alta da história)…Liberdade que faz desaparecer o tecido industrial, arrasa as cidades e os pilares da cidadania, das igrejas aos sindicatos e as organizações cívicas.

Pode-se argumentar que, de toda forma, e muito mais claramente que na Espanha, esse desmoronamento social foi contido, que a economia dos Estados Unidos leva vários anos em expansão, que a taxa de desemprego foi tão reduzida que quase se pode falar em pleno emprego, que o pior já passou, que chegou de novo a hora do otimismo. Mas se trata de uma ilusão, porque a forma com que políticos, banqueiros e grandes empresários enfrentaram essa crise não curou as feridas, não ha reconstruiu o tecido social que havia antes. Até porque ter um emprego, na era da precariedade e do arrocho salarial, já não és garantia de uma vida digna. Nem lá nem cá.

Após a II Guerra Mundial, houve nos EUA uma espécie de época dourada do capitalismo, mais de duas décadas em que o contrato social implícito estabelecia uma distribuição da riqueza que não chegava a ser equitativa, mas tampouco era abusiva demais, um sistema onde todos ganhavam (ainda que alguns poucos levassem muito mais que a grande maioria) e a paz social se mantinha com o desenvolvimento econômico. Mas a paisagem atual é bem diferente, mostra uma degradação sem volta atrás, que começa na Era Reagan e se manteve ininterrupta durante as administrações dos democratas – nem Carter, nem Clinton e muito menos o Obama do yes, we can puderam reverter.

Em 1980, 50% dos estadunidenses pensavam que a próxima geração viveria pior que a sua. Hoje a cifra subiu para um assustador 80%. O câncer da desigualdade chegou ao ponto de metástase, corroendo a sociedade inteira. Os ricos são mias ricos que nunca. Os pobres, muito mais pobres. Packer não tenta fazer pregação ideológica, se limita a contar histórias e refletir os fatos. Oficialmente, não toma partido. E não faz falta, porque as conclusões são evidentes.

Desagregação não é o primeiro livro que ilustra uma tragédia existencial, nem será o último. Contudo, posso estar muito enganado, mas creio que deverá se tornar referência sobre a crise mais destrutiva da história dos EUA. No fim das contas, esse foi o grande mérito de John Dos Passos na Trilogia USA: que é inevitável se referir às suas novelas para analisar aquela época conturbada, mas não tanto quanto a atual, em que o império ainda pretende ditar a pauta no mundo enquanto a podridão corrói suas entranhas.
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Luis Matías López é ex redator-chefe e ex-correspondente em Moscou do El País da Espanha, membro do Conselho Editorial de PÚBLICO até a desaparição de sua edição em papel.

Créditos da foto: onpoint.wbur

Texto replicado: CARTA MAIOR